Logo para começar, a melhor coisa a fazer é varrer toda
essa raiva da frente.
A raiva do semelhante, do distinto, do consorte, de nós
mesmos. A raiva dos mais queridos, dos desafetos, dos inimigos, dos cretinos,
dos boçais, dos corrompidos, dos coitados. Do destino. Do passado. Do presente.
Do ausente. Da falta de sorte, da falta de tempo, da falta de estímulo, da
falta de grana. Do desgraçado do chefe, do empregado, do salário, da injustiça.
Do revés, do obstáculo. Da inércia. Da ausência de horizontes. A raiva do amor.
Da falta do amor. Do desgosto. A raiva do mundo inteiro. E ainda a raiva da
raiva, coitada, que não tem culpa de nada, só pratica seu ofício, é apenas
sentimento. É bom espanar com vigor a raiva que pulsa, sobe, explode e vinga.
Então, dá-se uma varredura geral naquelas guardadas, cultivadas, conservadas ou
escondidas embaixo de algum tapete.
Dito que a raiva cega, assim que ela é afastada pode-se
então enxergar mais fundo.
É hora de vasculhar as mágoas.
Certamente se encontrarão antiguidades. As mágoas de
infância, mesmo as motivadas por tolices, são as mais enraizadas. Arranca-se
tudo. Em seguida aparecem as apaixonadas, dos tempos de juventude: invejas,
ciúmes, traições, feridas mal cicatrizadas, tudo muito exagerado. Estas têm uma
vantagem: muitas são vindas de êxtases, big-bangs adolescentes, foram
devidamente expelidas desde quando apareceram, portanto já se desagregaram da
alma. O que sobrou é fragmento. Pouco. Resto. Mas as mágoas mais recentes, as
que permanecem alertas e continuam se alastrando, são veneno. Contaminam. Por
isso é tão necessário que sejam remexidas com toda cautela possível. Depois de
identificadas, todas as mágoas, sem exceção, devem ser exterminadas.
Recomenda-se muito fogo para reduzir a cinzas tudo que indevidamente ficou lá
atrás, encarcerado.
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