domingo, 29 de abril de 2012

Acidente

E o que parecia impossível aconteceu. Ontem achei que a vida era um acidente burro: minha cadela tinha desaparecido. Fiquei impotente como um vaso vazio. Ela está muito doente e então ficamos sabendo que cães muito doentes desaparecem, não vão muito longe e ficam escondidos até morrer. Fui em todas as casas vizinhas, vasculhei quintais, acordei de madrugada pra chamá-la pela rua, chorei e me consolei dizendo que seria melhor para ela e para mim, apesar de saber que não era verdade. E hoje, no meio de um macarrão triste, ela reapareceu, como se nunca tivesse sumido. Fiquei feliz como se ela nem estivesse doente; como se tivesse acabado de nascer. E a vida, de acidente burro, virou um acidente bom. Um erro certo. Além disso, fui ao aniversário de uma das pessoas mais legais que existem. E pronto. Que bom que o mundo é circular.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Muralha

Com o som certo para as palavras e o cheiro certo para a presença, você amolece o mais duro gosto pela vida. Ainda que nada mereça uma racional lista neste momento, é como se faltasse o mais essencial ar puro e quente da minha saúde. O ar certo. E pela incoerência da vida e o delicioso gosto contrário pelo certo, esse ar, que se disfarça em puro, nada mais é que o velho conhecido gosto dos sonhos vermelhos aveludados e perfumados de cabarés imaginados.
O gosto pesado de erros soltos, expostos, e mais do que de encontro com o que palpita sem coerência mas soa em perfeição dentro de mim. O ar que bombeia as formigas de uma retardada felicidade levando sensações até para as improváveis pontas do cabelo e unhas do pé. Aquele que arrepia até as peles sem vida das camadas mais próximas à morte. As palavras saem querendo ter sentido, mas a boca se morde tamanha a vontade de abocanhar tanta cerimônia e transformar o peso ereto do humano responsável em instinto animal que corre de quatro e morde sem pedir.
Nada que eu não tenha sentido antes, ou escrito, mas mais uma vez, o que pontua minha vida em momentos e me joga para a frente pra cair de cara. Seja para chorar o inferno próximo, seja para me sufocar de você querendo todos os meus ângulos.
De energia presa num interesse congelado que grudei nos seus olhos, ainda me pergunto se minha clareza não te cegou. Minha energia em potencial, louca para cair de um longo prédio de andares divertidos e morrer tristemente no vazio de um fim certo para um sonho improvável, está zerada na espera de um estalar de dedos.
Estale os dedos e olhe para o chão. Eu estarei ali, arrastada em possibilidades e forte em atração para subir até o andar para o qual você me der asas.
Sei, como sempre soube desde que tomei noção de minha existência baseada em vôos com horas marcadas para quedas, que vou me estabacar em pedaços mais uma vez. E sei que os juntarei novamente, me jurando preservação. E, assim que estiver inteira, estarei novamente cheia de vontade de sair dando encontrões com o mundo. Este mundo que insiste em inventar leis, regras, juramentos e instituições. E insiste em perder para seres apaixonados que juram, até para Deus, que nada pode ser mais sagrado do que a fidelidade aos hormônios.
Clichês me embrulham mais o estômago que qualquer podridão que meu ladopuritano oitenta, irmão gêmeo do meu lado safada oito, tente me jogar na cara.
Aqui estou eu aberta até onde se pode rasgar, exposta até onde se pode vender e insinuando até onde se pode explicitar. E ainda que isolada de cúmplices, longe de aplausos e renegada de benção, aqui estou eu novamente servindo com prazer os meus joelhos à divindade do desejo.
Se você não puder esperar, será bem-vindo em minha ansiedade. Se você me quiser embaixo de mangas, será bem-vindo em meu masoquismo feminino nada original.
Por hora lhe agradeço. Voltaram a gritar os teclados espancados de sentidos para traduzir uma alma que já não cabe mais em seu estado natural. Agradeço-lhe o sorriso estúpido que por mais banal que seja nos faz sentir negritados em meio a tantos seres e suas aspirações. Agradeço-lhe a vontade de errar, sem ela minha vida não parece certa.

sábado, 21 de abril de 2012

Não vou pensar

Eu não vou pensar em você hoje. Não vou pensar nos seus olhos fechados, e depois não vou pensar neles abertos. Não vou imaginar como fica a minha própria imagem de cabeça para baixo, quando projetada na sua retina. Não vou pensar no diâmetro das suas pupilas e muito menos na coloração das suas mucosas. Não vou pensar na profundidade das suas órbitas ou na inervação motora das suas pálpebras. Os movimentos dos seus olhos podem pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
Eu não vou pensar nas rachaduras dos seus lábios e nem nos sorrisos que escapavam por ali, não vou verificar se tem cianose, não vou me preocupar com a sua hidratação, nem mesmo vou pensar no sabor da sua saliva e em tudo o que eu esqueci de dizer, não vou me lembrar das últimas palavras que eu ouvi de você - nem das primeiras. A sua voz pode pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
E, finalmente, eu não vou pensar no seu calor intoxicante entupindo meus poros, eu não vou pensar nas suas roupas amassadas e quentes caindo no chão, eu não vou pensar na sua febre nem no meu termômetro, eu não vou pensar em encostar em você. Eu não vou pensar em você. Hoje.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Sobre estar certo e ser feliz

Já não me lembro mais quem primeiro me fez (ou citou) a pergunta  “você quer ser feliz ou quer estar certo?”, mas não é novidade que a memória sempre nos falha na hora dos créditos.
Escolher ser feliz é algo novo e desafiador para mim, que sempre dediquei meus esforços a estar certa. Pensando, remoendo, formulando hipóteses, tentando entender, saber, confirmar.
Ter razão é uma embriaguez. Um “bem que eu disse” eterno que, mesmo que você não diga ao alvo da sua certeza, ecoa durante bastante tempo na sua cabeça, tempo demais na minha.
Só depois de bastante tempo descobri o paradoxo de que ter a razão me recompensa, mas também me persegue. E também perde a graça.
A vontade da certeza é, aliás, um paradoxo em si mesma. Em muitos momentos, o gozo da confirmação da nossa razão é ofuscado pela dor de saber que o que você imaginava que seria verdade é mesmo.
Muitas vezes, estar certo significa saber antes de descobrir, para o bem ou para o mal. A busca por ter razão nos coloca diante do momento em que sabemos que algo acontecerá e que nos fará sofrer. E esse algo acontece. E sofremos. Ter razão não salva ninguém.
Só quando me disseram esta frase (“Você quer ser feliz ou quer estar certo?”) me dei conta da obviedade de que estar certo e ser feliz não são opostos, mas também não são sinônimos. E percebi que direcionei meus esforços para o caminho errado.
Tomar decisões também é algo muito difícil para mim – isso veremos em outro capítulo – mas dessa vez, me contardocalligarizei. Resolvi que minha escolha nesta terrível encruzilhada é ser feliz.
Escolher ser feliz é mais difícil do que eu imaginei, confesso. Envolve muito respirar fundo, muito eleger prioridades e muita paciência. É um esforço mudar a chave que me condiciona a querer estar certa.
Mas apesar das dificuldades, já posso dizer que a vida é melhor do lado de cá. Há, por exemplo, um mundo mágico das brigas conjugais que se resolvem mais facilmente, porque estamos menos preocupados em ter a razão do que em entender o outro e superar a briga.
Quando estou otimista, muito otimista mesmo, chego até a achar que grandes conflitos mundiais poderiam ser resolvidos partindo desta mesma escolha.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Viagem à roda do meu quarto

Passarão horas. Pelo fio estreito dos ponteiros: passarão todos os segundos. E as paredes ainda assim resistem, como se guardassem um segredo imenso que enquanto não sei, conservam e por isso me conservam dentro do meu quarto. A cama desfeita expõe alguma nudez que já perdi, talvez feita no interior da madrugada quando os sonhos habitavam o quarto mais do que eu - sempre me pergunto se o ar fica mais grosso e irrespirável quando dormimos. É que a cada momento esse espaço desenhado por tijolos parece ter um tamanho diferente e apresentar outra face de si para mim: às vezes acordo, o quarto me olha sóbrio e, cúmplice dos meus sonos e insônias, revela que sabe de mim mais do que sei.