quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O bem do mal e o mal do bem


Eu não reconheceria o Darth Vader se o visse à paisana, mas certamente sentiria a emanação do seu mal nas entranhas. A vibração do mal pega no basal, dá dor no estômago, nó. Desarranja a configuração digestiva. Já o bem, não. O bem sempre esteve relacionado com o norte do equador da cintura. O bem romântico é o amor, a alma, a cabeça, o olhar, a respiração (em tese, por que na real, amor do bem também contém o bem do mal).

O problema não é o bem do mal, que bem administrado, rende bons aprendizados. O ruim é o mal do bem.

O mal do bem é a nossa mania socialmente aceita e considerada politicamente correta de dar força e atenção pra tudo que é ruim. Ninguém se interessa em saber se ontem um empresário em Taipei doou dez mil dólares para uma ong, mas basta descarrilar meio vagão de trem em Dudinka pra dar na CNN. E não é pela surpresa de saber que Dudinka não é apenas um ponto no mapa do jogo de War, é porque desgraça internacional tem sempre lugar garantido no jornalismo.

É velho dizer que notícia boa não vende e que por isso a mídia se concentra em notícias ruins, mas como a mídia é feita por humanos podemos concluir que problema está em todos nós. Problema, sim, porque nossa sede de sangue, a vontade atávica de conhecer a morte mais de perto, já fez muita gente diminuir a velocidade na estrada pra ver o acidente e causar novos acidentes.

Da mesma forma a ofensa nos mobiliza muito mais do que a aprovação. Ninguém muda de caminho por causa de um elogio sincero mas as pessoas são capazes de inverter a rota do domicílio por uma contrariedade. Sendo bem maniqueísta e simplista, a força do mal está na nossa incapacidade de absorvê-lo. Não comemos o mal, não fagocitamos a contrariedade, não levamos o desaforo pra casa. Ao refletirmos o mal, como espelhos, estamos retroalimentando o monstro. O monstro, simbolicamente falando, nutre-se do nosso medo do mal.

O melhor seria engolir o sapo, aprender a digeri-lo, desenvolver novas enzimas para destruir seu eventual veneno, criar anticorpos para o próximo batráquio. Comer o mal, expelir o mal do mal e absorver o que de bom ele nos ensina.

Claro, tudo isso no plano do simbólico, a menos que alguém queira comer o Darth Vader no sentido lato. Não tenho intimidade com o personagem, mas pelo que vi no cinema, Darth Vader, é espada!

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Sobre o amanhecer




Minhas pernas estão cansadas, minha mão que estava trêmula, agora desliza no que restou de meus pensamentos, no que restou de minha vontade. Meus olhos pedem descanso, minha boca pede calma, meu corpo pede um banho, minha eloquência pede uma bebida, para me livrar dos vícios, do medo, da burrice. Não enviei flores, canções bobas, a conta do fim do mês ou recados em qualquer rede social. Preferi me calar, ficar em paz com o mundo, em guerra com meu travesseiro. Preferi ser egoísta e compartilhar com minha cama a sobra da poesia com versos meus, sem rimas tuas. Tenha um bom dia.

A história completa de Ada


Ada fingiu a vida inteira mas nunca deixou de procurar a verdade. Sempre uma tosse de angústia na boca do peito. Sempre um motorzinho acelerado enjoado lá pro meio de algo que fica dentro. A língua travava de vontade de mudar todo o discurso pronto e dizer apenas a verdade. Mas qual era a verdade?


Então Ada seguia fingindo. A vida inteira. Estudou um monte de coisa que se embaralhava na sua frente, mas fingia acreditar que aquilo a levaria para algum lugar. Um lugar com novos amigos e novos projetos, talvez. Talvez essa fosse a verdade que purificaria tanta coisa sem sentido. Mas também não era isso porque, com esses amigos e projetos, Ada seguia fingindo. De fingir estudar passou em tudo que fingiu se importar. De fingir curtir as festas e os amigos e aquilo tudo, Ada vivia em álbuns felizes e acabava feliz. De fingir amar, acabou chorando e doendo e escrevendo tantas coisas bonitas. Ada seguia fingindo o tempo todo. Às vezes, com medo de morrer soterrada por tanto teatro, Ada segurava firme no fundo dos olhos de alguém e dizia: a verdade é que, a verdade é que. E a pessoa, caso fosse assim como Ada, uma pessoa especial (porque quem procura essa verdade sempre é) só dizia: eu sei, eu sei. E era isso. Um momento especial, de verdade, sem a bola de pêlo presa na goela. Sem a tosse de angústia, tentando soltar algo pro ar entrar.


Mas que algo? Então Ada ia ao psiquiatra e dizia não entender todas essas coisas que acabam acontecendo porque acontece com todo mundo. Mas pra quem? Qual é a verdade? Todos caminhando, todos com horários, todos de volta, cansados, o cérebro já bem gasto, agora podemos dormir. Pra amanhã mais e mais. E Ada ia. Como na hora do rush do metrô.


Empurrada pela multidão sem verdade pra dentro de algo que leva pra algo. Eles precisam pagar as contas, diria sua mãe.  Ter um problema sério nos ocupa de não ter o problema real. O problema real é que não dá pra calar a cabeça procurando a verdade. Onde está a saída daqui? O tempo todo essa pergunta: onde está a saída? Qual o caminho mais rápido para a minha cama, o silêncio, o escuro. Ada abraça as pernas, como criança, e se diz baixinho: não dá pra saber a verdade, não dá pra parar a cabeça, nada parece realmente o que é, hoje eu não disse o que realmente queria, aquelas pessoas não sentem aquilo que demonstram, eu pouco me importo com 70% dos preenchimentos do meu dia, mas é preciso chegar até amanhã.


É preciso chegar. Ada se formou, trabalhou, viajou, escolheu fazer a cirurgia, escolheu ver a novela ao invés do filme, escolheu dormir até mais tarde. Sem saber a verdade, Ada escolheu viver. No último segundo, até porque prometi que essa era a história completa de Ada, Ada descobriu algo que nunca mais poderá contar a ninguém. Só o que sabemos é que, em sua última sugestão do que seria a verdade, ela sorriu como sorrimos para um bebê quando ele se levanta bem compenetrado depois de desabar.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Mundo interno

Eu tenho um mundo dentro de mim. A minha ingenuidade que o fez. Os sentimentos fraternos de amizade, amor e carinho foram os materiais essenciais para a construção das casas e prédios que o comporão. Em cada uma dessas moradias eu guardava uma pessoa que a mim significava alguma coisa. Nos edifícios mais altos, habitavam as pessoas que eu mais gostava e que eu tinha um enorme apreço. Logo, toda alegria que surgia diante de tal fraternidade, levianamente, fez emergir nesse mundo tudo muito do perfeito até o aprendizado nascer. Inimigo da ingenuidade, com ela, veio a brigar.

Sem perceber, cresci enquanto presenciava edifícios desabando sem entender o porquê de tudo aquilo. Eu não queria que em ruínas as casinhas lá em baixo também desmoronassem. Inevitável. Corroía tudo e eu só sabia questionar mesmo sem ter respostas, só fazia isso. Chorar talvez fosse o preço que devia ser pago por todos os sorrisos dados por ter aquele mundo perfeito dentro de mim. Se assim foi, secou-me a fonte pagando mais do que eu devia.

No meu interior, fragmentos incontáveis. Fluídos delineavam o que havia restado daquele mundo. Fluídos de força? Só sei que me fortaleci quando me vi na situação de reconstruir tudo à espera de novos habitantes. Ingenuidade dando sinal de vida outra vez. A cada construção, mais cautela. Porém, nada adiantou. Efeito dominó. Cada desastre um pior que o outro. Foi quando percebi que o erro não estava nas obras, mas sim em quem nelas habitaram. Fim da ingenuidade e de materiais de construção.
Mundo vazio. Embaixo dos escombros ficaram as lembranças e eu não quero revirar nada para responder. Melhor deixar assim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Otimismo doado.


Eu conheci um otimista na infância. Ele era um pouco mais baixo do que eu, tinha olhos claros e a pele vermelha, falava baixo e nunca mostrava os dentes durante as refeições. Nós crescemos juntos, passando todos os verões, até o princípio da puberdade, viajando para a região dos lagos para aproveitar melhor o sol. Ele me dizia que o otimismo tinha quatro pares de patas e me mostrava cada uma delas na areia, saindo de um cilindro assimétrico que desenhava com o dedo, pois naquela época eu não sabia ainda fazer contas e precisava ver que eram oito com clareza para entender como podia o otimismo subir pelas paredes e tecer em apenas uma noite enormes teias de seda para se pendurar no teto.


Aos treze anos, mais ou menos, ele me disse que não mais me acompanharia nas viagens de fim de ano e, quando perguntei o porquê, apenas me disse que preferia as ruas asfaltadas entre as feitas de pedra. Não soube dele desde então e, no ano seguinte, resolvi criar dentro de um pote de plástico com algodão molhado o meu próprio otimismo.

Meu pequeno otimismo cresceu com um esqueleto rígido envolvendo seu corpo diminuto e se alimentava uma vez por dia de pequenas porções de rotina que eu colocava na beirada do seu algodão. Em pouco tempo, cresceram nele presas curtas e enegrecidas as quais enfiava com alegria nas pequenas bolotinhas de rotina, desenvolvendo o estranho hábito de sugar de uma só vez seu conteúdo mole e gratificante, deixando penduradas no tecido que contornava o plástico carcaças recheadas de um tédio pegajoso que introduzia no lugar e envoltas em fios de desespero que desenrolava da própria saliva.

Meu otimismo, então, tinha quatro pares de patas, três segmentos de corpo e um esqueleto sólido envolvendo o tórax. Vivia nos pequenos paraísos de escuridão do meu quarto e entrava nos sapatos suados e impregnados de boas intenções passadas de prazo que eu costumava colocar para arejar em algum desses cantos aonde o frescor da madrugada fazia a curva durante a noite; entrava nos sapatos e esperava pacientemente para inocular suas toxinas na minha pele vulnerável quando eu chegava para esmagá-lo pela manhã.

Demorou bastante tempo até que eu compreendesse que o otimismo é a ruína da rotina e do convívio diário e percebesse que os otimistas, dentre as suas tantas peculiaridades, jamais andam olhando para o chão e, por isso, enfiam os saltos nas porções de terra entre os calços das ruas de pedra. 

Portanto, antes que me arrancasse o privilégio de andar de cabeça baixa e de contar as vezes que meus pés tocam as linhas da calçada, resolvi que não podia mais criar a criatura selvagem dentro de um quarto/sala (talvez se eu morasse em uma casa com jardim, quem sabe). Deixei meu otimismo em um retiro de artistas, para que não se consuma sozinho com suas próprias expectativas, para que emoldure seus sonhos e os pendure em uma parede amarela de tinta e velhice, para que assista o desengano alheio explodindo em uma constante festa de despedida ao seu redor e não se sinta tão sozinho como na minha gaveta ou no meu sapato, comendo do pouco que restou dentro de mim para alimentá-lo além da realidade.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Bcg

As marcas de vacina nunca passam. Elas sempre voltam quando você olha pros braços nus ou conta pra um amigo que está feliz de novo. Estar feliz nunca é problema, mas aquela cicatriz que foi feita na carne com dor e agulha, volta com os beijos e com os exames dizendo que issoé amor em miniatura.

A peça


Não só hoje, mas desde sempre, o mundo tem sido uma peça incrível, mas muito mal produzida. As maquiagens são ruins, é aparente. Os atores raramente sabem seus diálogos, suas marcações de cena ou como contracenar apropriadamente com os demais. Os diretores estão perdidos, não sabem o que fazer com tanta gente ou como usar os cenários da forma mais apropriada. Os assistentes de palco só fazem correr de um lado pro outro, tantas e tão diversas são as ordens que recebem, e os figurantes só ficam parados no meio do caminho, nunca sabendo se devem fingir que estão conversando tranquilamente ou se na realidade estão no meio de uma cena de ação. A orquestra não consegue se harmonizar, visto que o maestro está constantemente em busca das partituras, e os dançarinos dançam cada um a sua própria dança absurda, rodopiando em torno de seus próprios umbigos.

As cortinas fecham e as cortinas abrem sem motivos aparentes. E até aqueles que decidem ser só os espectadores, que pagam, com a própria cara, pra ver, estão todos um tanto robóticos, insensíveis, e um quê catatônicos com tanta coisa que acontece ao mesmo tempo, e alguns até mesmo envergonhados com a bagunça que ofende da pior forma possível a grandeza e a beleza do roteiro (que, aliás, ninguém sabe ao certo onde foi parar). Alguns tentam rezar pela ordem, gerando um crescente burburinho na platéia, e os que estão tentando dormir para fazer passar o tempo reclamam. Outros estão desesperados para subir no palco, estapear os atores e desempenhar seus papéis no lugar deles, mas simplesmente não podem. Os mais ambiciosos querem ser diretores e querem ser escritores, mas não podem competir com a arrogância e a impassibilidade dos atuais.

Lá fora, também, há um ensaio de caos. As pessoas que chegaram atrasadas e não puderam entrar compram briga com os desistentes, que vão saindo com olheiras fundas. E há os transeuntes, é claro, os que nunca sequer tiveram a intenção de entrar no teatro. Ou porque acham desnecessário ou porque acham caro demais. Esses andam tranquilos, sem motivos nem necessidade de motivos. Simplesmente em paz.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Bomba



Atire a bomba
Mas não esteja lá no momento da queda.
Não há nada pior do que sentir o impacto.