segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Desembaraço

Eu peguei um estilete e cuidadosamente separei você de mim,
nas fotos.

Uma por uma. Eram muitos álbuns e eu não pretendia sair de casa,
até terminar.

Contornei as nossas mãos entrelaçadas,
e não deixei qualquer vestígio da minha pele junto a sua. 
Assim me parecia fácil,
afastar-nos.

Uma e outra não teve jeito.
Ou eu levava um braço seu, 
ou você ficou com mechas dos meus cabelos.

Acho que deve ser assim mesmo. Alguns pedaços se misturam,
de um jeito muito difícil,
de desembaraçar.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Trajetos

O meu medo é que a gente deixe essa semana passar, que o mês inteiro passe, dois meses, um ano, sabe lá quantos anos a gente vai deixar passar. O meu medo é que a gente mude. Quer dizer, é claro que vamos mudar, minha preocupação é que é possível que deixemos esse tempo passar indefinidamente até eu não mais saber da sua vida, até você também não saber nada da minha, até sermos pessoas diferentes, separadas por incontáveis mudanças, que nos impedirão de, algum dia, voltarmos para as pessoas que fomos, ou que quisemos ser - ou que pensávamos querer ser.

Nós não vamos nos esbarrar por aí como acontece nos filmes. Eu não vou ter a oportunidade de ver a sua felicidade de relance. O traçado urbano abaixo de nós foi desenhado com o intuito de impedimento. A cidade foi construída pensando em minhas separações, e uns tantos quadrados riscados do meu calendário, após eu perder a conta das tantas páginas e dias que se passaram, seremos aquelas pessoas as quais estamos destinados a nos transformar, com novos pensamentos, com ideias diferentes sobre o capitalismo, sobre as mudanças climáticas, sobre os personagens das nossas séries favoritas, estaremos em universos diferentes, separados por treze ou dezesseis estações de metrô que nunca se cruzam.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Cárcere


“De boas intenções o inferno está cheio”, e por isso eu fui parar lá.

O fogo não é tão quente quanto esperamos. Se o “frio é psicológico”, o calor não passa de um estado de espírito. Não arde, não queima, mas dá um mal estar.

O fogo do inferno me queimava enquanto eu pensava sobre as atitudes que não tomei. Aquele caminho sem volta de todo dia – a rotina – só fazia com que o purgatório fosse uma espécie de residência fixa. Eu não morava lá, mas era lá que eu me sentia bem.

Os demônios agem como pessoas comuns, até porque são. Talvez não na minha frente, mas sinto que pelas costas eles atuam como pequenos núcleos de uma grande base que movimenta as minhas escolhas. Eu tenho o poder de escolher. Eles têm o poder de influenciar.

Entre infernos e demônios existe o meu dilema. O mal estar do calor, o bem estar do purgatório e os diabos moldando as situações criam o meu próprio inferno, da qual nenhum outro faz parte, nenhum pode entrar e eu não posso sair. O meu inferno pessoal está ligado diretamente aos meus desejos, as minhas palavras, a minha vontade. Não sei se quero sair do inferno enquanto ele está assim, superficialmente confortável.

Enquanto viver, não posso sair do inferno, pois “o inferno são os outros”.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Pra você

Querido,

de novo estou atrasada. E de novo posso arrumar inúmeras justificativas injustificáveis. Não sei se está incomodando você esse tempo em que não estamos tendo para falar de coisas corriqueiras. Pra mim, tá começando a ficar bem chato. Porque gosto de saber das coisas comuns, se você está aproveitando o seu tempo para o trabalho artístico ou procurando algum, se está lendo algum livro, pra onde tem ido, que filmes tem visto, se já escutou aquele álbum do Gun's que ficou faltando. Só não tenha dúvidas de que acordo pensando em duas coisas: preciso escrever e preciso falar com você.

Hoje, em especial, gostaria de estar perto de falar de como estou me sentindo. Acho que estou perto desse fim de balanço. E, talvez por isso, não tenho tido assunto suficiente para transformar em um texto. Você inventa histórias e eu só sei falar de mim mesma. As poucas que criei não chegam a fazer número para eu poder acreditar que também consigo.

Como acabei transformando nossos diálogos num meio de vomitar todas as dores que me incomodavam e após tantos anos eu me colocando como a personagem principal de quase tudo que está escrito aqui, parece que esvaziei. E agora? Além de atrasar nossas conversas, transformei nossa companhia em consultório sentimental.

Joguei em você muita coisa que estava agarrada e posso dizer que me sinto melhor – mas que fique bem claro, foram anos pra me recuperar de um tanto de trancos. Não consigo ser feliz em dez lições. Dez mil, talvez.

Quero comentar com você o último filme que vi, uma animação bastante inteligente. E saber se você gostou tanto quanto eu. Quase não tenho saído, e agora com o trabalho que me consome, preciso me desdobrar.

Fui no restaurante que éramos para ter conhecido, adorei. O lugar é bem bonito e a comida não decepciona. O preço é meio desonesto mas os garçons são sorridentes. Precisamos ir qualquer dia.

Seu aniversário está próximo e torço muito para que comemoremos juntos, é algo que não pode deixar de acontecer.

Estou meio lerda para formular ideias, tenho trabalhado, ou melhor, executado um sem número de peças. E como estou novamente fora de minha praia, me perco, morro de medo de esquecer alguma coisa, tenho sonhos com clientes brigando comigo e na verdade eles brigam mesmo. Não sei lidar muito bem com isso, fico um tanto quanto atormentada.

Minha mãe vai tirar férias daqui a alguns dias e sinto que nosso tempo já está perto da data de validade. Todo ano é igual. Alguma coisa entre a gente é frágil, em menos de um mês já estamos nos tropeçando. Depois de novembro, ela volta para as atividades. E eu volto a ser dona do meu espaço.

Além desta carta, iniciei outros textos, e vou deixá-los prontos para não passarmos por isso novamente. Cansei de sentir que estou atrasada.

Miss you,

sábado, 6 de outubro de 2012

Circunstância


É uma tarde preguiçosa. Um dia atípico em que se fica totalmente livre. Você ganhou uma folga ou ficou doente, com o tempo feio que faz lá fora, a sua tarde se resume a você e às quatro paredes do seu quarto.

Você deita na cama com o laptop na barriga, ouve o barulho da chuva e, de vez em quando, olha para a TV ligada e quase esquecida.  Entre uma zapeada nos canais e uma caneca de café, você se pega assistindo à Sessão da Tarde. O filme já começou e você provavelmente já perdeu o primeiro bloco. Mas tudo bem, você sempre quis ver aquele filme, ele não foi nenhum sucesso de bilheteria, não foi pra Cannes, mas você curte aquela atriz, ela tem pernas bonitas, é engraçada e tem ótimas tiradas. E você se toca que nunca assiste à Sessão da Tarde porque é uma pessoa ocupada, seu tempo é curto e, se não fosse a chuva ou a gripe, certamente você estaria na rua fazendo outra coisa.

A história é boba, mas te prende a atenção, te envolve, te arranca uns sorrisos. É, você gosta do que vê. Até que o filme acaba e você pensa “até que foi legal, mas é só mais uma comédia romântica”. E comédias românticas são feitas pra isso, para as tardes livres de solidão. E verdade seja dita: daqui a meia hora, você já esqueceu do que viu.

Sejamos francos, você nunca iria ao cinema pra assistir a um filme desse tipo, não convidaria um amigo para vê-lo, não tiraria o carro da garagem pra isso. É desses filmes que te valem duas horas de entretenimento sem compromisso. E eu me sinto assim, a sua Sessão da Tarde, a sua companhia sem muita expectativa ou grande emoção. Como um desses filmes que não valem o ingresso e, de tempos em tempos, tem reprise garantida. Aí você me assiste de novo, me sorri de novo e me esquece de novo.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Escolhas


Eu estava deitada, meio doente, na cama da minha avó. Acho que eu tinha uns cinco ou seis anos. Ela estava pronta para sair. Passou pelo quarto e disse: tchau, la. Eu olhei para ela, triste e pedi: té, fica, vai. Ela disse: está bem. E ficou. Sou profundamente agradecida a ela por isso até hoje. Às vezes é tão bom ficar.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Desejo inconsciente


O sonho começa comigo mascando chiclete.

Possui sabor de tutti-frutti, daqueles que só havia na minha infância. Ele ocupa toda a minha boca. Com o tempo o sabor original se mistura a tudo que o ato de mastigar sem engolir drena de meu sistema digestivo, e o doce se torna ácido, azedo. A essa altura a goma já havia crescido e ocupado tudo, grudado em meus dentes, em minha língua, no céu da minha boca. Já não é possível me livrar do chiclete com um simples esforço.

Levanto pra ir ao banheiro e separar a goma de minha boca. Não há caminhos até o banheiro, gera um corte de cena e me vejo debruçada na pia, mãos dentro da boca para desgrudar o chiclete, que demora a sair. Quanto mais eu puxo, mais parece que sou eu me despedaçando ali. Já não há mais a cor falsa da goma tutti-frutti. A porta começa a balançar e mal consigo grunhir para avisar que o banheiro está ocupado.

Saio do lavatório ainda com a boca ocupada, sem conseguir me expressar. Um homem grisalho e de suéter, me repreende. “Depois desse tempo todo, você ainda não conseguiu?” Abaixo a cabeça, e ao levantar a vista me deparo com um avião vazio. Poucas pessoas ocupam lugares esparsos. De vez em quando uma se levanta, se dirige para a porta e pula. Ninguém parece se incomodar.

Olho pela janela e vejo apenas o céu matinal, tanto aos lados quanto sob o avião. Pergunto à comissária se ainda é dia. “Ainda é dia, mas não é mais cedo”. Questiono a altura em que nos encontramos. Ela ri. “Altura? Acho que ainda nem saímos do chão”. Respondo com dificuldade, “E esse azul sob a gente? E esse céu?” “Céu? Eu só vejo chão”. E saiu de perto de mim para ir até a porta e pular.

Me sento ao lado de uma senhora idosa. Ela me diz que adora conversar, mas que está cansada e quer apenas ouvir uma canção. Faço sinal negativo com a cabeça; não consigo nem mesmo balbuciar a frase explicando os motivos de não poder mais cantar. Ela se irrita e diz que não canto porque não quero; se levanta, vai até a porta e pula.

Vou até a porta também. Olho para baixo e vejo o mesmo azul sem fim, sem norte, sem referência, sem profundidade. Um homem para a meu lado e diz que é gostoso pular, mas que eu não deveria fazê-lo. Minha vontade é perguntar por que só eu não devo, ou se ninguém deve, ou o que há de gostoso no azul, ou por que não consigo falar. Em vez disso, olho para ele e aponto minha própria boca. “Você pôs na boca o chiclete, não? Então fique firme e continue no avião”.

Com muito esforço, pergunto apenas “Por quê?” Ele me responde: “Se você sair não há mais avião”, e me puxa para trás.

Caio de costas em minha própria cama, suada, com um filete de sol em meu rosto. Ainda é dia, mas não é mais cedo.