domingo, 29 de janeiro de 2012

Castigo.


Não consigo me livrar de sua morte. Eu tomo banho, e ela continua me rondando. Eu escovo os dentes, e ela está lá, um cabide onde ponho o casaco na entrada e saída das minhas conversas.

Eu faço amor, eu assisto aula, e ela permanece inteira, vigilante. Já cumprimentei sua morte e ela não mudou de posição. Já chorei, já rezei, e ela não vai embora. Decidiu ficar comigo, sua morte, tenho que me acostumar.
Sua morte não me pede nada, nem um prato de comida, não emite um som. Incomoda quem nos olha sem falar. Sou capaz de dar tudo para que ela falasse alguma coisa.

Não, longe de ofender sua morte, sua morte não me suja, não me incomoda; ela me desequilibra. Eu fico desnorteada, como quem tem pouca roupa para o inverno, como quem senta nas mãos para se aquecer. Estou sem saber onde é o meu lugar e não descobri a pergunta a fazer para retomar o esquadro. Sua morte não mudou a cidade, Recife continua como estava, as ladeiras esperando a sombra como uma puta, a luz verde do outono. Sua morte mudou meu jeito de enxergar.
Vontade de me desculpar por estar escrevendo sobre você, não tinha esse direito. Sua morte não me torna importante, nem sublinhará o que passamos juntos. Mas sua morte me transforma repentinamente em seu familiar. A morte tem disso: de aproximar telepaticamente quem se conviveu. É a intimidade que deveríamos ter criado em vida.

O que me assusta (de ternura) em sua morte é que você está nela rindo. Não me lembro de seu rosto tomado de severidade. Você morre e eu me apresso a existir. Sinto-me egoísta, porque sua morte me faz pensar em mim e assim esquecê-lo. Eu me defendo da minha morte em sua morte.

Você não podia morrer. Quanta orfandade em seu espaço. Seus amigos perguntarão muito sobre você. Você será uma premonição na hora triste e uma lembrança na hora alegre. Você não será um amigo ausente, mas uma ausência abrasada, que cuida, que entusiasma, eu lhe garanto. Uma ausência que frequentará seus sonhos com a pontualidade de quem o espera na escola. E, acima de tudo, seus amigos não precisarão inventá-lo. Você fez sua parte no amor.

Com todo afeto, 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Free hugs


Todo presidiário tem dez minutinhos de sol, um recreio para banhar o rosto com a luminosidade da manhã. Já quem é livre talvez passe 24h longe de um pátio, desprovido de um mísero contato com a luz do dia. Talvez não abra a janela, sequer levante as persianas, para espiar o azul do horizonte e criticar a temperatura dos relógios da rua.

Quem é livre age com culpa. Encarna-se na profissão como um condenado, debruçado a atender os múltiplos sinais do celular, laptop, iPad. Sempre encontra um tempo para adiantar uma tarefa, mesmo que seja necessário abdicar do almoço, mas nunca abre frestas para se sentir no mundo. Suas frases mais comuns são que não tem escolha; precisa se sustentar; há muito a fazer.

Se fossemos samambaias, estaríamos mortos. Secos. Murchos. Até abraçar desaprendemos. Ninguém mais abraça com vontade. Odeio abraço falso. Abraço tem que ter pegada, jeito, curva. Aperto suave, que pode virar colo. É pelo abraço que testo o caráter do outro. Não confio em quem logo dá tapinhas nas costas. A rapidez dos toques indica a maldade da criatura. Não sou porta para bater.

Devemos fechar os olhos no abraço, respirar a roupa do abraçado, descobrir o perfume e a demora no banho. Requer cruzamento dos braços e uma demora do rosto no linho. Abraço é para atravessar o nosso corpo. Sou adepto a inventar abraços. Criar abraços. Inaugurar abraços. Realizar um dicionário de abraços. Um idioma de abraços. Abraço é confissão.

Dez minutinhos de sol e de liberdade.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Daqui por diante


Você me diz que tratará de arranjar um jeito de arrancar seu amor por mim. Como parar de fumar ou beber.  “Pare de amar e emagreça dez quilos”. Parece fácil? Já o vejo colocando adesivo no carro. Mostrando fotografias de antes e depois.  Tem medo que eu o descarte, portanto é melhor acabar agora. Não vai arriscar. 

É com facilidade que afirma. Com desembaraço. Assim como trocar o dia cinco pelo seis na folhinha do calendário. Está cansado de explicar. Explicar o que nem entende. Você é capaz de casar para se vingar. Fingir que está feliz. Colocar toda a sua concentração para me convencer que conseguiu. 

Serei deportada de sua memória. Explica que não é pessoal, é uma decisão técnica. Há outras vidas inocentes em jogo. Não é justiça, é desespero, que dá no mesmo. Sofrerá um pouco de contrariedade no início. Como um vício. Após a primeira semana passa. Acredita que passa.  

Você decidiu que não presto para sua vida, que merece alguém melhor. Como quem escolhe ser vegetariano. A partir de hoje, não comerá mais carne. Eu não presto, nunca prestei, mas o amor que você sente não tem nada a ver comigo. Ele não depende de nós para nascer ou morrer. 

Isso só descobrirá depois. Depois de desistir de desistir de desistir. 

sábado, 21 de janeiro de 2012

Cicatrizando



Uma fratura exposta dói não só no dia em que se abre, mas cada vez que o vento decide trazer alguma poeira daquilo que com o corte se perdeu. A poeira pode ser pequena e causar pontadas de dor, ou grande, trazendo toda a sujeira de uma cidade, causando explosões. Pode-se passar álcool todo o final de semana para desinfetar, mas a proteção invisível evapora no dia seguinte, deixando a poeira entrar.

O que esquecemos é que a fratura só continua exposta por opção. Uma sutura é sempre possível e recomendada. A previsão da dor da agulha entrando na carne é o que nos paralisa. Costurar dói tanto quanto fraturar.

Seja por raiva, desespero ou puro masoquismo, um dia a coragem chega. E uma vez costurada, a porta se fecha para a poeira, a dor passa e dá lugar a coceira. Uma coceira que não grita como a dor, mas que sussurra constantemente ao pé do ouvido. Até que, um a um, os pontos começam a cair, por cada rasgo que um dia fez doer. Dando lugar a cicatriz, uma linha torta em um corpo, agora, fechado.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Coração elétrico

Propaganda de uma marca de barbeadores elétricos em que através de um editor de texto foram substituídas as palavras barbeador por coração, barba por amor e pelos por dores.


O coração elétrico surgiu como uma maneira eficaz de fazer amor sem ter que gastar muito tempo. É rápido e produz melhores resultados. Este é precisamente o motivo pelo qual, muitos executivos levam sempre consigo um coração elétrico o tempo todo.

O coração elétrico oferece muitos benefícios sobre um coração convencional. Ele oferece um melhor amor em menos tempo. Funciona em qualquer tipo de eletricidade. Você nunca mais vai conseguir usar outro coração que cuide tão bem de sua pele e remova as dores de uma maneira tão macia.

Quando você for comprar o seu coração elétrico, você deve ter cuidado com um detalhe importante - a vida útil da bateria. Talvez você precise usar o seu coração elétrico onde você não tenha uma conexão elétrica que sirva para o seu coração. A bateria recarregável vem ajudá-lo em ocasiões como essa. De modo que, verifique o tempo de carga da sua bateria e assegure-se de que o coração elétrico tem um indicador da carga da bateria. Isto irá informá-lo quando a carga da sua bateria está terminando.

Os corações elétricos são ideais para as pessoas que têm um estilo de vida corrido e que sempre colocam seu trabalho antes de tudo. Este dispositivo elétrico ajuda você a controlar melhor o seu tempo, e deixa você pronto para qualquer evento importante onde você tem que apresentar-se com a melhor aparência possível. Se você está se preparando para uma reunião ou indo a um encontro, você vai querer ter um amor perfeito e uma ótima aparência. Se você está pressionado pelo tempo, um coração elétrico pode ser extremamente útil, pois você vai poder ter um amor em quase qualquer lugar, a qualquer hora.

Coração elétrico - praticidade, segurança e respeito ao meio ambiente.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Pentimentos


“Pentimento” é a palavra italiana para arrependimento, mas designa (em muitas línguas) uma pintura, um desenho ou um esboço encoberto pela versão final de um quadro.

Às vezes, com o passar do tempo, a tinta deixa transparecer uma composição em cima da qual o artista pintou uma nova versão. Outras vezes, os raios-x dos restauradores desvendam opções anteriores, que permaneceram debaixo da obra final. Esses esboços ou pinturas, que o artista rejeitou e encobriu, são os pentimentos, que foram descartados sem ser propriamente apagados.

Visível ou não, o pentimento faz parte do quadro, assim como fazem parte da nossa vida muitas tentações e muitos projetos dos quais desistimos. São restos do passado que, escondidos e não apagados, transparecem no presente, como potencialidades que não foram realizadas, mas que, mesmo assim, integram a nossa história. Nossas vidas são abarrotadas de caminhos que deixamos de pegar; são todos pentimentos. 

Em geral, pensamos que nos faltou a coragem: não soubemos renunciar às coisas das quais era necessário abdicar para que outras escolhas tivessem uma chance. E é verdade que, quase sempre, desistimos de desejos, paixões e sonhos porque custamos a aceitar que nada se realiza sem perdas: por não querermos perder nada, acabamos perdendo tudo.

O problema dos pentimentos é que eles esvaziam a vida que temos. O passado que não se realizou funciona como a miragem da felicidade que teria sido possível se tivéssemos feito a escolha “certa”. Nem sempre os pentimentos são bons conselheiros. Hoje, é fácil esbarrar em espectros do passado: as redes sociais proporcionam reencontros improváveis e, com isso, criam pentimentos artificiais.

Somos perigosamente nostálgicos de escolhas passadas alternativas, que teriam nos levado a um presente diferente.  Os pentimentos não são necessariamente recíprocos, e os falsos pentimentos, revisitados, são pequenas receitas para o desastre.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Não enfie amor no meio





Sempre me intrigou o termo “fazer amor”. Tirando o fato de ser brega até o talo, com licença do duplo sentido, nunca entendi porque deram ao sexo esse peso todo. Amor não se faz ali na cama, na banheira, em pé, sentado, ou quietinho em banheiros públicos. Amor se faz no dia a dia, nos planos, nas conversas, nas piadinhas, nos apelidos, na superação. Dar sim é outra coisa. Trepar, transar, nada disso precisa de amor pra acontecer e pra ser bom.

A diferença está em tudo que envolve o ato em si. Estar numa relação dá tranqüilidade. Aos mais preservados, dá a segurança necessária para mandar uns ‘vai com força, safado’, ou ‘bate mais’ sem se sair como uma ninfo sedenta. Também faz o dia seguinte ser mais leve. Sem ressaca moral, sem lembrar da cara do sujeito, ou sujeita, e imaginar o que o outro achou, no que está pensando. Sem esperar o telefone tocar ou um novo convite surgir.

Mas sinceramente, sem dar voltas ou medir palavras, vamos lá. Pau dentro é pau dentro, com ou sem amor. Não tem amor que faça diferença. É suor, instinto, é todo mundo querendo ser feliz,  e mais o que a flexibilidade humana permitir. A pessoa pode até gritar ‘eu te amo, eu te amo, eu te amo!’, acompanhando o ritmo do balanço pélvico. Mas se a ação estiver espetacular, qualquer um vai falar isso. Você ama todo mundo quando está prestes a ter um orgasmo. Ama o mundo, o vizinho, o padeiro, os pássaros, os hippies. Quem dirá a pessoa que está ali colada em você. O sentimento em si, o amor, a vontade de casar, ter filhos, o carinho, o cuidado, nada disso influencia a qualidade do sexo. Ou vai dizer que você nunca deu umazinha inesquecível com uma pessoa que não amava?

Claro que trepar com amor tem um clima diferente. Principalmente pela felicidade e pelo sentimento de plenitude. Mas isso tudo se manifesta nas preliminares, não no pau quebrando em si. Eu estou falando é dos hormônios ensandecidos que independem de amor pra se manifestar. Que funcionam com toque, com estímulos físicos. Quero ver alguém manter um olhar doce e meigo enquanto está com as costas roçando num lençol e um cara suado rasgando tudo em cima. Ah, não. E não tem nada de errado em não haver amor nesse momento. É, na verdade, uma prova de que ainda existe justiça nesse mundo doido. Porque tanto os casais mais apaixonados quanto recém-conhecidos podem ter o mesmo prazer.

Se amor bastasse pro sexo ser monumental, se a qualidade da xuxada fosse proporcional ao amor que o casal sente, relacionamentos não balançariam por falta de encaixe, em todos os sentidos. Vale amor com sexo e sexo sem amor. Só não vale “fazer amor”.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O extraordinário


Acordei com o coração meio apertado. Sabe os dias em que nos levantamos e parece que, apesar de muitas coisas estarem fora do lugar, o que é perfeitamente normal, há essa coisa que não sabemos localizar ou reconhecer, e que tem um peso a mais? E certamente tem mãos, ainda que imaginadas, porque nos aperta o coração ao mesmo tempo em que o afaga.

E me veio à cabeça um pensamento que já é antigo, porque eu costumava tê-lo quando ainda era uma menina. Depois ele adormeceu, e deu de hoje acordar. O pensamento que inquiria: qual foi a última coisa extraordinária que você fez?

A diferença é que, desta vez, eu fiquei em silêncio.

Lembro-me de responder a essa pergunta com as armas que tinha: quem eu era, as situações que vivia. Como quando cuidava da casa para que, quando chegasse, minha mãe não precisasse superar o cansaço que acumulara durante o dia para lidar com os nossos, e pudesse se deitar mais cedo, preparar-se para o dia seguinte, para a suntuosa repetição do árduo. Eu tinha lá meus doze, treze anos de idade, mas já respondia tal questão, confidenciando a mim mesma: foi extraordinário oferecer a minha mãe o tempo de descanso que ela merecia.

A cada dia era um acontecimento nomeado extraordinário, e naquela época, eu sequer sabia exatamente o significado disso. Porém, era extraordinário conseguir puxar baldes de água lá do poço e carregá-los, escada acima, para lavar a louça. E também perceber as folhas das árvores estampadas no chão de terra, depois de o quintal ter sido varrido. E fazer companhia a minha avó na hora da Ave Maria, para que pudéssemos ampliar os pedidos, mas principalmente, dar conta dos agradecimentos.

Acontece que, desta vez, eu recebo a pergunta com meu jeito de adulta com uma boa cota de desapontamentos. Um olho no peixe e outro no gato, porque não consigo reconhecê-la da mesma forma que antes.

Dou-me conta de que não me convence mais o qual foi a última coisa extraordinária que você fez? Assim como a definição de beleza, o extraordinário depende, completamente, da visão de seu autor. Percebo que há mais valor ainda em questionar: qual foi a última coisa extraordinária que a vida fez por você?

O que realmente me faz compreender o quão longe da sutileza do extraordinário eu ando, é que não há resposta que não seja pensada e repensada. Antes, lá na juventude da ansiedade em viver a vida, eu nem precisava pensar para responder: ajudar a construir o altar da parada da procissão, colocar meus primos na cama, não muito tarde, jogar queimada com os amigos da rua, levantar-me e ir para a escola aprender o futuro.

O que aperta meu coração, creio, é essa incapacidade de reconhecer o extraordinário no que, adulta que hoje sou, tornou-se a minha lista de necessidades. Acordo e me levanto com o dia programado e longo nos afazeres. E no final dele, aproveito as horas que me restam das 24 prometidas, e cumpridas, para pensar o que foi feito. E então, como pensar no extraordinário se, distraidamente, caminhamos em círculos?

Porém, tenho visto o extraordinário no outro, o que me empolga e traz alento. Como a forma educada com que o senhor ajuda o outro, afetado fisicamente pela idade avançada, a entrar no ônibus. Além da ajuda em si, há o sorriso desse homem, e ele é tão sincero que me comove. Sinceridade me comove.

Quando percebemos que não somos os verdadeiros autores dos acontecimentos extraordinários, tendemos a nos sentir desapontados, mas isso passa. Ainda que sejam esses acontecimentos cotidianos, pelos quais passamos sem a eles conceder a real importância. Acontece que nós gostamos da ideia de sermos autores, de celebrarmos a benevolência, como se tivéssemos, literalmente, a cultivado e feito florescer em solo infértil. Um pequeno milagre. Porém, o extraordinário vai além, tornando-nos instrumentos desses milagres, permitindo que o feito não seja apenas para nós mesmos.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Além do horizonte.




Com os olhinhos curiosos da infância, Davi fitava o horizonte.
Ficava imaginando quantas coisas se escondiam do lado de lá. Atrás daquela linha misteriosa, estava oculto um mundo inteiro. O sol, quando se punha, mergulhava vagarosamente lá no fundo. Os carros que subiam a lomba desapareciam depois da linha. Imaginava Davi que eles caíssem do outro lado. Ele não tinha certeza para onde iam, nem se algum dia voltariam. Mas invejava que eles descobrissem aquele mundo mágico que ele sabia existir após aquele inalcançável traço. Imaginava que seu pai, quando viajava, ia para adiante do horizonte. Seu pai certamente conhecia tudo o que existia do outro lado, mas não contava nada para ninguém. Era segredo. Um mundo mágico não pode ser propalado aos quatro ventos. Deve ser guardado a sete chaves. Senão não é misterioso, nem mágico. Talvez ele crescido também pudesse ir para lá. Ficava satisfeito ao pensar que um dia conheceria o outro lado. Veria os carros todos caídos em algum lugar, o sol descansando em algum canto e tantas outras coisas que só existem do lado de lá. Seu pensamento foi interrompido pelo grito de sua irmã. Estava na hora de trocar a janela pela televisão. Com um aceno para o horizonte, Davi se despediu do seu enigmático amigo e correu para não perder mais um episódio do seu desenho preferido.

sábado, 7 de janeiro de 2012

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Juice of people


Dizem que se você andar na rua olhando para as costas de uma pessoa por tempo o suficiente, ela, eventualmente, vai se virar para te olhar. O que aconteceria? Como as outras pessoas sentiriam nossos olhares sem nos ver? Imagino que a presença de um estranho colado na sua traseira incomode ou, no mínimo, instigue a curiosidade, ou qualquer coisa que deixe de fora a filosofia e a psicanálise. Desde que li essa teoria, tenho me sentindo um tanto quanto invisível, passo o dia encarando nucas e ninguém nunca, em nenhum momento, sentiu a necessidade de olhar para trás - e me ver ali.

Observei junto com isso o limpar de lágrimas com o polegar, "Não fique assim, vai dar tudo certo" e você vai e entrega sua mão como pára-brisa de rostos tristes, mostra-se próximo, mostra-se sem receio de contaminar-se com os sentimentos alheios, apenas mostra pois, quando o outro menos espera, lá está você pondo-se a esfregar de volta os dedos enlagrimados nas costas do mesmo indivíduo cujas lágrimas acabou de limpar, devolve esse suco de sentimentos antes que suas próprias mãos os absorvam, e cria um círculo de tristeza em volta da pessoa que não consegue ver para onde suas lágrimas escoam, invisíveis são as lágrimas, invisíveis são os pequenos gestos - se vistos com uma lupa podem até mesmo ser inexistentes.

A tristeza e a compaixão forçada que frequentemente nos sentimos obrigados a unir em uma mesma cena, para mim, são o mesmo que o despreocupado que sai pelas ruas e o outro que vai encarando seu pescoço por trás, o de trás é lágrima o da frente é polegar, se a lágrima te encara por tempo demais você se sente impelido a limpá-la com esse mesmo polegar. Talvez, então, eu não seja invisível, apenas não tenho lágrimas, ou nunca consigo me fixar na mesma nuca pelo tempo que é preciso para que ela olhe para trás - e me veja ali - quando ela se vira eu já não mais estou, fui atrás de outro pescoço, persegui outro transeunte sem rosto até a porta de casa, encarei outro polegar por mais de um segundo esperando que ele entendesse e pegasse um colírio e me criasse lágrimas - para depois limpá-las. 

O tempo suficiente de cada nuca (para se virar) e de cada polegar (para servir de toalha) são constantes, me parece, mas as lágrimas secam e quem anda na rua nem sempre vai para o mesmo lugar, polegares e nucas precisam ser mais rápidos na hora de secar lágrimas e olhar para trás, antes que as lágrimas evaporem e chovam novas dores em cima de quem não se ofereceu para arriscar-se a guardá-las nas veias, antes que quem anda atrás se canse, ou se distraia com um outro pedestre ou com um saci - olhe para trás enquanto ainda estou aqui.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Pressa


Descobri que posso inventar tudo novo, sem repetir o que já vivi. Estou espantada com a capacidade de renovação que eu nem sabia que tinha. Tem um nome bobinho pra isso, que não gosto, mas que dizem que é inspiração. Inspiração me lembra algo muito brega, sempre imagino um pintor sentado num parque, numa paisagem francesa, pintando um quadro sem graça, piegas.


Mas estou muito feliz e isso, claro, me assusta um pouco. Porque sou afobada, ansiosa, minha vó dizia isso enquanto eu comia a massa do bolo antes de ele entrar no forno. E depois ficava ali de guarda, olhando o bolo crescer. Como aquilo demorava. Acabei de lembrar de outro episódio que mostra o quanto sou ansiosa. Ganhei uma galinha de presente quando fui passar férias no sítio da minha tia. A galinha estava chocando uns ovos e, segundo minha tia, os pintinhos iriam nascer em pouco tempo. Mas quem disse que eu deixava a pobre galinha chocar os ovos? Toda hora ia lá perto para ver e tirava ela do ninho. Tá, eu era criança e crianças são meio abestalhadas de vez em quando.


A verdade é que não sei mais me comportar no modo de espera. Quero tudo pra agora e já. Me vêm à cabeça todas os ditados, metáforas e provérbios próprios para o momento. Devagar se vai ao longe. O apressado come cru (mas eu adoro sushi). Quem espera sempre alcança. Vou respirar fundo e tentar conter meus milhões de impulsos para não sair atropelando o tempo. Sei que isso assusta e espanta. Mas só entenda que é uma vontade de viver muito e que há tempos eu não sentia. É como a fome. A sede. Quando estão grandes, você só pensa na saciedade.


Se puder entender isso, fico mais tranquila. Aí poderei voltar a ser quem realmente sou. Nem tão normal, nem tão maluca. Mas o suficiente para deixar que tudo aconteça no tempo certo. Seja lá o que isso quer dizer.