quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Pombos Vs. Predador

Estava atravessando a rua, no Centro, quando notei que dois pombos disputavam a chegada até a calçada comigo. Fui recuando, já naquela posição de proteção, com as mãos esticadas no ar, como se eles fossem voar a qualquer segundo em minha direção. Tenho pavor das finas que os pombos tiram da gente. Eles nunca voam em nossa direção. Normalmente fogem da gente. Os pombos não voam mais. Agora eles correm como galinhas.

Já perceberam que raramente um ser humano está interessado em lhes amassar a cabeça. Portanto, não precisam mais bater asas. Economizam energia.

Houve um tempo em que as pessoas viajavam pro estrangeiro e não deixavam faltar no álbum uma foto com pombos espalhados pelo corpo. Os bichos faziam parte de um cenário romântico. Hoje são como meninos de rua, caçadores de migalhas. Se eles chegam muito perto, a gente espanta. Se eles entram num shopping, a gente pede pro segurança tomar uma atitude.

Essa ave de origem asiática, que convive há mais de 10 mil anos com o homem, ocupa hoje o quarto lugar em números de chamadas para combate a pragas da Divisão de Controle de Animais Sinantrópicos (aqueles que vivem próximos aos humanos e prejudicam-nos de alguma maneira). Só perdem para ratos, escorpiões e pulgas.

Entraram para a categoria de pragas miseráveis, sem qualquer glamour. São considerados transmissores de doenças e já perderam o título de símbolo da paz há muito tempo. Em Veneza, por exemplo, repelentes específicos e sistema de eletrificação nos monumentos e prédios evitam a aproximação da espécie.

Ao contrário do que muita gente pensa, a abundância de alimentos não é a principal causa da proliferação da ave nas cidades e seu consequente rebaixamento à condição de peste urbana. Segundo a bióloga Mônica Schüller, que estuda o comportamento dos pombos em São Paulo, uma espécie – animal ou vegetal – passa a ser uma praga quando o número de animais que se alimentam dessa espécie diminui, permitindo sua proliferação exagerada.

"Longe de riscos, a espécie encontra condições de se reproduzir descontroladamente, tornando-se uma praga”, explica. Como uma série de outros animais, incluindo nós, os bípedes evoluídos, eles constroem ninhos em qualquer canto e se reproduzem quase que infinitamente.

Vamos pelo mesmo caminho. Produzimos e comemos lixo, invadimos e devastamos todos os campos, brigamos por um pedaço de terra, sonhamos com um canto para construir nosso ninho, nos multiplicamos de forma descontrolada e nos aglomeramos em grandes centros, onde as migalhas parecem ser mais abundantes.

Enfim, somos uma puta de uma praga.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

À procura.

Sempre pensei como adulto, sempre sofri como adulto, mas agora, relendo alguns diários e textos antigos, vejo páginas e mais páginas contendo apenas pensamentos de criança, que criança é essa que aparentemente eu fui e nunca conheci?

Fiquei tentando encontrar uma explicação para entender essa distância tão grande entre o que eu achava que sentia e o que eu sentia de verdade, ou o que eu deixava transparecer através de palavras coloridas com canetas hidrocor, cada letra de um tom diferente de rosa, e só consegui pensar em uma coisa: talvez a intensidade de algumas ideias e pensamentos seja tão grande (para mim e para qualquer um) que quem os têm em mente acaba por sentir-se mais maduro e mais adulto apenas pelo fato de tê-los.

Uma vez a pessoa sendo arrebatada por esses sentimentos tão assustadoramente desconhecidos e não conseguindo compreender a si mesma, ela acaba achando que aquilo só pode ser um sentimento, um sofrimento, um pensamento de adulto, já que nos acostumamos a relacionar a vida adulta com conceitos de sabedoria e maturidade e compreensão de certas lógicas e fatos que uma criança jamais teria a capacidade de entender, a incompreensão, portanto, nos leva a amplificar o sofrimento.

Porém, quando tudo o que parece tão grande dentro da cabeça é transcrito para o papel, podemos perceber toda a imaturidade inoculada em lágrimas para a qual estávamos cegos. Lendo, você consegue avaliar as próprias palavras como se fossem de outra pessoa e, bem, as outras pessoas sempre parecem tão infantis e egocêntricas, não é mesmo? Sim, elas são, e você também é, e eu também sou, mas é impossível perceber isso se não nos olharmos de fora e não nos abrirmos para a análise crítica e impiedosa de nós mesmos, nós que, infelizmente, insistimos em sofrer como adultos por coisas de criança.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Pedregulhos.

A parede da minha sala é feita com pedras do chão da rua. Duas avenidas e três praças me encaram na vertical, com seus pedaços encaixados, confundindo cola com gravidade. Às vezes me esqueço que é parede e erro o caminho. Ando em direção à porta e, de repente, me encontro no teto. E, então, despenco, sem graça, segurando o cós da calça enquanto vou recolhendo as unhas e dentes que perdi na queda. Por favor, não vá me dizer que eu subi na parede porque quis.

Perdi as profundidades, e a realidade eu comi com pão. Me desequilibro nas pedras, rachadas e mal coladas. Me perco em casa. Enfio o dedo na tomada e tropeço no fio da televisão. Vejo os olhares tortos de quem come com calma na mesa da cozinha. Talvez a casa só esteja rodando em volta de mim (ou talvez eu que esteja rodando em volta da casa). Quero mostrar pra você o que eu vejo agora que meus óculos ficaram presos no lustre. Deixe que eu me explique antes de me mandar descer e esquentar a sopa - esquentar não, ferver - para matar até os últimos resquícios de bactérias e sentimentos e lembranças que ainda me permito guardar.

Fico de olhos fechados, torcendo para que eles não quebrem ao meio como o resto de mim. Talvez não exista mesmo mais o que falar, não agora que percorro tantas ruas entre o chão e o teto, não agora que cavei buracos por toda a cidade para me criar uma parede. Você pode me vendar e contar até dez, me empurrar e segurar os meus pés. Não me importa mais o que faça, comigo ou com as outras pessoas, depois que construí minha parede com pedras de rua, em qualquer lugar que eu esteja, me encontro no chão.

domingo, 27 de novembro de 2011

Exame físico

O abdome é dividido em nove quadrantes, os médicos delimitam previamente as linhas do esquartejamento, sobra aos assassinos pouco ou nenhum trabalho. Quero que você vá descendo a lâmina afiada da sua faca na linha imaginária marcada pelos mamilos, aproveite e roube, através deles, minhas melhores endorfinas batidas no leite. Quero que vá rasgando a pele aos poucos, isso, sem medo, sem deixar a mão tremer enquanto me corta, sem limpar o sangue que escorre, meu último desejo é sujar os seus sapatos.
Pela dor que eu sinto você já fez duas linhas verticais, dividiu meu corpo em três, mas as doenças são muitas, são necessários espaços menores para examinar alguém com precisão, não se preocupe, estou aqui para te ensinar, vou mostrar exatamente o que você tem que fazer. Seguro sua mão para te ajudar a abrir os dois últimos talhos horizontais, o primeiro bem na crista da bacia e o outro começando logo abaixo das costelas, imagino que você esteja pensando em como elas ficariam uma delícia defumadas e regadas ao molho de churrasco, queria que tivesse me avisado da sua antropofagia antes que eu te permitisse tomar conta da minha autópsia.
Pronto, estão aí expostos os nove pedaços de mim que você desconstruiu, quero que me diga qual deles apresenta o maior grau de maciez, só não repare essa discreta distensão ali no meio, bem aonde você apoiou a mão trêmula, cansada de tanto me dilacerar, é o resultado de todo o ar que engoli junto com as palavras que tanto ensaiei, mas que fiz questão de não te entregar.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Fratura

Nunca sabemos quando tudo realmente acaba. O beijo roubado que te fez voltar suspirando para casa ou cantando baixinho no ônibus pode ter sido o último. Aquela noite de amor inesquecível talvez não se repita mais. O abraço do amigo, a viagem para Porto Alegre, a conversa na varanda durante a noite fria, o banho de piscina, o pedaço de bolo de fubá com café quentinho, o passeio com o cachorro. De uma hora para outra, aleatoriamente, perdemos a chance de repetir nossos melhores momentos, e ficam apenas fragmentos, fantasmas guardados nisso que chamamos de memória.
Não dói a ausência. Dói isso que fica. Esse processo penoso que chamamos de luto não é falta, é presença. A chaga, a fratura, o órgão dilacerado, é esse vulto, essa imagem difusa que não nos deixa, a permanência do que não existe mais. O último “eu te amo” dito é um fêmur que se parte em dois e que rasga o músculo. O primeiro segurar na mão dela é a clavícula exposta quando tudo termina. O beijo que você relembra a cada fechar de olhos é um maxilar feito em pedaços.
Somos a soma de nossos encontros durante a existência, e alguns deles são feridas que nunca cicatrizam. No fundo, é a felicidade que mutila. Só o que é intenso deixa marcas, só o inesquecível rasga a carne. E não adianta não se colocar no mundo, não adianta fugir do outro, não adianta se esconder. A única alternativa viável para permanecer intacto é não viver.
Sendo assim, jogue-se. Quebre-se. Frature-se. E tenha orgulho de cada uma dessas marcas.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A nostalgia e o metal


Na sexta-feira de 04 de abril desse ano, um dia antes do show de Ozzy Osbourne na Arena Anhembi, em São Paulo, assisti a um especial da MTV sobre o príncipe das trevas. O programa mostrava Ozzy no estúdio com sua nova banda, gravando videoclipes e até participando de uma pegadinha com seus fãs. Fazendo uma alusão ao refrão de seu novo single, ‘Let me hear you scream’ (Deixe-me ouvir você gritar), a produção da MTV retirou a estátua de cera de Ozzy de um museu em Los Angeles e pediu para o próprio vocalista ocupar o local. Ou seja, Ozzy ficava ali paradinho esperando a chegada dos fãs. Quando alguém se sentava ao lado da ‘estátua’ para tirar uma foto, Ozzy se mexia e dava um susto. Fizeram isso umas 50 vezes, ri em todas.
Comecei o texto falando sobre isso porque a brincadeira dá dimensão de quem é o ‘personagem’ Ozzy Osbourne hoje em dia. Quem acha que Ozzy é apenas um vocalista de heavy metal não tem noção do que representa sua figura para a cultura pop. Ozzy é um Nosferatu pós-moderno, com tudo de paradoxal e farsesco que isso representa. Sim, ele é vocalista de heavy metal e um dos principais pioneiros do rock pesado em todo o mundo. Mas ele também é um rufião que sabe muito bem transformar sua imagem de louco em milhões de dólares.
A carreira de Ozzy começou como a de dezenas de outros rockstars: lançando um disco atrás do outro, fazendo turnês exaustivamente longas por todo o planeta, consumindo álcool e drogas em quantidades assustadoras para os padrões da população ‘civil’. Desnecessário dizer que Ozzy e seus companheiros da formação original do Black Sabbath – o guitarrista Tony Iommi, o baixista Geezer Butler e o batera Bill Ward – praticamente inventaram em 1969 o heavy metal como conhecemos hoje, pelo menos a escola mais ‘escura’ desse estilo de tantas vertentes.
Ozzy ficou apenas dez anos no Black Sabbath, mas foi o suficiente para criar obras clássicas, como os discos ‘Black Sabbath’, ‘Paranoid’, ‘Master of Reality’, Sabbath Bloody Sabbath’ e outros. Ozzy saiu e engatou uma bem sucedida carreira solo; o Sabbath também se deu muito bem ao contratar o (recém-falecido, infelizmente) vocalista Ronnie James Dio e criar um novo catálogo de clássicos de estilo um pouco diferente.
A partir do lançamento do primeiro disco de sua carreira solo, ‘Blizzard of Ozz’, em 1980, ficou claro que Ozzy não era mais apenas um vocalista de heavy metal. Ele era Ozzy Osbourne, príncipe das trevas.
Tudo ficou mais exposto com o reality show The Osbournes, que mostrava o dia a dia na casa de Ozzy e sua família. A série ridicularizava o roqueiro mostrando que ele obedecia cegamente à mulher em tarefas mundanas e parecia um fantoche dentro de sua própria casa. Por outro lado, o show rendeu milhões de dólares e levou a imagem de Ozzy a um público que normalmente teria medo dele ou, pelo menos, antipatia.
Mostrou que, por trás da imagem vendida durante anos de ‘príncipe das trevas’, Ozzy não passava de um tiozinho meio atrapalhado e inofensivo. Como fã de Ozzy, achei meio desrespeitoso. Hoje entendo que não era nada disso. Essa imagem foi pensada e construída ardilosamente por Ozzy e Sharon Osbourne, sua mulher e empresária.
Percebi isso na entrevista coletiva que Ozzy deu em São Paulo, em matéria da TV Estadão. Ozzy diz que nunca mais fará um programa de TV, atribuindo ao estresse das gravações o câncer da mulher Sharon e o envolvimento dos filhos Jack e Kelly com drogas. Dito isso, que deve ser verdade, Ozzy disse na coletiva que tem uma vida normal e que seu dia a dia consiste basicamente em limpar o cocô dos cachorros a mando da mulher.
Achei isso meio forçado porque essa foi justamente uma das cenas mais famosas do reality show. Ora, estamos falando de algo que a TV mostrou há anos. É inconcebível imaginar que a vida de Ozzy em casa ainda é pegar cocôs de cachorro no chão. Portanto, ao que parece, Ozzy ‘usa’ deliberadamente a imagem que o reality show exibiu, optando por divulgar uma imagem planejada vis-à-vis sua imagem real: a imagem de um tiozinho meio atrapalhado e inofensivo já está espalhada, não é preciso explicar muita coisa. Ao usar essa imagem conscientemente, Ozzy deixa de ser o Ozzy-vocalista-de-heavy-metal e se torna Ozzy-o-ídolo-da-cultura pop-personagem-de-reality-show. É mais fácil ser um Nosferatu pós-moderno do que um artista que continua se desafiando artisticamente após tantos anos de carreira.
Quando sobe ao palco, no entanto, qualquer resquício desse personagem desaparece. Lá não tem Sharon Osbourne para encher o saco, nem produtores de reality show ou marqueteiros. Lá é o lugar de Ozzy e sua banda de garotos que poderiam ser seus netos. E se tem um cara que sabe montar uma banda de rock pesado, esse cara é o Ozzy.
Ozzy já trabalhou com alguns dos melhores guitarristas do mundo. Ele tem faro, sabe escolher um desconhecido em transformá-lo em um guitar hero. Tudo bem, isso na Califórnia nem é tão difícil assim: lá os guitar hero crescem em árvores. Mas Ozzy tem o seu mérito; basta ver a lista de guitarristas que passaram por sua banda.
Depois de Tony Iommi, Ozzy descobriu Randy Rhoads. O baixinho loiro ex-Quiet Riot precisou de apenas três discos para entrar para a história do rock. Basta ouvir os riffs e solos de ‘Crazy Train’ e ‘Mr. Crowley’, considerados até hoje solos mais incríveis da história da guitarra. Rhoads morreu cedo, vítima de um estúpido acidente aéreo, e a partir daí outros grandes guitarristas começaram a se revezar no estúdio e no palco, sempre ao lado esquerdo de Ozzy: Brad Gillis, Jake E. Lee, Zakk Wylde e, agora, Gus G.
Ao contrário do Iron Maiden, que tocou no show da semana anterior ao dia 04, um repertório composto basicamente por músicas novas, Ozzy foi mais populista e cantou praticamente apenas velhos sucessos. ‘Let me Hear You Scream’, a segunda do show, foi a única exceção. Mas a música é bem legal, então o ritmo do show não foi quebrado em nenhum momento. ‘Mr. Crowley’ dispensa comentários, e pudemos ver o talento do guitarrista grego Gus G. Quem é fã de Ozzy, gosta que seus guitarristas mantenham os solos originais, principalmente os de Randy Rhoads, que são inesquecíveis.
Foi nessa hora que a chuva começou a cair com mais força. E continuou assim até o final do show, incomodando todo mundo. Para mostrar que não tinha medo de água, Ozzy jogou um balde de água sobre a própria cabeça. ‘Fuck the rain!”, gritou, em mais um arroubo de sua já conhecida educação britânica.
Assistir a um show debaixo da chuva é péssimo, não importa quem é o artista. Acho que mandar aquela quantidade de chuva deve ter sido uma vingança dos deuses, provavelmente inconformados com a popularidade do príncipe das trevas. Sagrado ou maldito, Ozzy é uma voz única, muito mais interessante e talentosa que a imagem de tiozinho meio atrapalhado e inofensivo vendida pela TV. Eu prefiro o Ozzy do palco.

domingo, 13 de novembro de 2011

Toca baixo.

Seria pretensão da minha parte dizer que não faço parte desta manada desenfreada e cheia de freios. A minha volta, mulheres teoricamente felizes, mães, esposas independentes, com seus cardápios da semana colados na geladeira, com os horários de todas as atividades das crianças em dia, com as viagens de férias planejadas, com suas babás de branco, com os presentes do próximo amigo oculto devidamente comprados e com presença confirmada em todas as festinhas de crianças. A massa segue, como um rolo compressor, achatando, tornando chato, tudo aquilo que encontra pela frente.
Donos de um nada que é tudo pra eles e de um medo de perder um poder que desconheço. Olho aquilo tudo e penso: Eles trepam. Eles fazem bebês com nomes da moda. Eles não usam drogas. Eles se suportam bem. Eles doam brinquedos para orfanatos. E violência, na cabeça deles, é ter o carro roubado.
Em silêncio, penso: Estou matando tempo. O tempo está me matando. Estou cercada de gente que não tem nada a ver comigo. É isso. Sou eu que estou no lugar errado. Preciso rir e sair daqui. Preciso encontrar aquele músico que parecia conhecer todo o meu corpo. Quantas vezes já suspirei em reuniões, incluindo as de pauta, por estar com a cabeça lá, naquela noite fria, quando encontrei um cara que deveria se chamar quem diria. Intenso e suave. Mãos fortes e um encaixe absurdo e exaustivo. Poucas palavras, muita informação. Dedos que pareciam varas de condão. O cara toca baixo, os músicos são mágicos. Baixo e bateria sempre em sintonia.
Talvez meu mundo fosse melhor ou mais fácil se eu deixasse de ser tão contestadora. Se eu buscasse um caminho menos árduo e me entregasse ao mundo mágico do Mickey Mouse ao invés de me apaixonar pelo Mickey Knox [personagem Woody Harrelson em Natural Born Killers]. Não foi uma escolha. Desde a infância, meu príncipe encantado, escrachado e, de bolso furado, era de massinha e tomava milhares de formas. Já me casei com meu professor de natação, com o John Malkovich, com o Roger Federer e até com o Lemmy Killmister.
Eu não quero carros. Não quero o controle nem as marchas. Não quero a sorte de um amor tranquilo. Amores inquietos são mais produtivos. Quero aquele sexo que dá barato. Quero um cara que me toque baixo.

Direção.

A direção do futuro é aquela para a qual aponta o medo. Siga-o, pois o medo não deve ser maior que o desejo de confrontá-lo. O medo é uma aliança no dedo daqueles que noivaram com o próprio destino, para o qual vitórias e derrotas não existem. Não há luta a ser ganha além daquela travada sem nosso consentimento, da qual só conhecemos o resultado: a escolha dos nossos desejos. Não escolhemos nossas escolhas, logo, não escolhemos enfrentar ou não o medo. O que nos diz respeito são as respostas que inventamos para justificar as escolhas que independem de nós. É pelo teor das respostas que intuimos termos enfrentado ou não o medo e atingido o futuro. Nosso livre-arbítrio é reativo. As tragédias gregas tratam exatamente disto, de como o herói não cansa de querer interpretar seu destino mesmo ciente de que fatalmente o cumprirá, ainda que já o conheça de antemão.

Das tripas coração.

Sempre fiz e faço das tripas coração para manter minha menina escondida. Dentro de um baú, eu a deixo sentada e calada. Fora do baú, ela aparece como marionete, como uma mulher[zinha] barata que finge saber o que quer e escreve o que todo mundo já leu. Engana a torcida e parece saber tudo da vida. Faz gestos e amigos como se soubesse o que é e aonde pretende chegar. Nega os padrões que mal conhece por medo de errar. Já se casa com medo do dia em que vai acordar e gritar: ‘estou pronta para me separar’. Anda em linha reta e, às vezes, tropeça e pede pressa para amar. Por trás da palhaça que escreve textos sinceros e abre o verbo no sexo, ela fecha as pernas. Os olhos arregalados e assustados entregam seu medo meigo de não agradar.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Complexo de Wendy.

Ontem, pensei que seria ótimo ser o Peter Pan. Mas o Peter Pan é menino. Não, acho melhor ser a Wendy. Não que eu tenha problemas com isso, porque, em realidade, a minha "porção masculina" é bastante forte, consigo pensar "como homem" em diversas situações. Meus amigos homens até de certo modo incluem-me no grupo, porque sabem que sou uma mulher um pouco diferente das outras. Compreendo os homens e seus "mecanismos". Em realidade, Wendy também é uma menina diferente, já que é inserida em um universo completamente masculino na Terra do Nunca, e adapta-se muito bem a toda aquela situação de aventuras e lutas com os piratas e o Capitão Gancho. E torna-se também uma espécie de líder. Líder sentimental. É a "mãe" que eles precisam, e também a conselheira, a ouvinte incondicional, o elemento apaziguador, o braço forte travestido na figura frágil. Assim, penso que sofro de algo que resolvi chamar de "complexo de Wendy".
Mas, ainda assim, minha porção masculina queria mesmo era ser o Peter Pan, e não pelo mesmo motivo que levaria todas os homens do mundo a quererem a mesma coisa, ou seja, ser Peter Pan para não crescer nunca. Não. Eu queria ser o Peter Pan, ao menos por alguns dias, porque descobri que o Peter Pan, além de não crescer nunca, não compromete-se sentimentalmente com ninguém e nem com nada. E não comprometer-se sentimentalmente, explico logo, não é "não amar", ou "não odiar", nada disso. Não comprometer-se sentimentalmente é amar ou odiar algo ou alguém sem ter a plena consciência disso. Peter Pan não entende os conceitos de amor e ódio. Peter Pan apenas preocupa-se em ter pensamentos felizes para continuar voando, sempre. Voar é ser livre. É só isso que Peter quer. Peter não quer amar, e nem odiar, e ele pouco se importa se é amado ou odiado. Peter ama e odeia independentemente de sua vontade: ele não tem consciência de seus sentimentos. Não se preocupa com os sentimentos. Deve ser interessante sentir amor ou ódio sem ter consciência deles. Sem saber que "eles" estão ali, dentro de você.
As crianças, todas, são como Peter Pan. Elas amam e odeiam, com a mesma intensidade, mas não são cientes de seus sentimentos fortes e ambíguos. Sentem: choram, sorriem, ficam bravas, têm raiva, gritam, dão gargalhadas, tudo com a mesma intensidade, e depois voltam ao seu estado normal com a maior naturalidade, como se nada tivesse acontecido. Os adultos, geralmente, relevam esses seus comportamentos, porque as amam incondicionalmente. O único amor incondicional que existe é o de mãe-filho e pai-filho.
A criança não tem muita preocupação se sua atitude vai provocar amor ou ódio nos outros. Ela é completamente descomprometida sentimentalmente. Não precisa explicar seus sentimentos. Explicar os sentimentos é a parte mais complicada das relações humanas. Isso é tarefa nossa, dos adultos, mas descobrimos cedo que também não sabemos como fazê-lo, e, um dia, chegamos à conclusão de que seria ótimo voltar a ser criança, para não comprometer-se sentimentalmente.
E então, o que concluo é que Peter Pan não queria crescer jamais não apenas pelo prazer de ser criança pelo resto da vida, mas, isso sim, pela certeza de que nunca precisaria comprometer-se. Não precisaria sofrer por amor ou por ódio. Jamais. E poderia voar sempre. E saberia que a Wendy estaria sempre lá, esperando por ele.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011


O ano era 2003. Eu tinha 11 anos e estava viajando para as praias em Natal – RN com meus pais. No caminho de ida paramos em um posto e achei a fita k7 do acústico MTV do Nirvana. As fitas já começavam a entrar em declínio e as lojas liquidavam as poucas que ainda restavam nas prateleiras. Comprei por uma bagatela e passei a viagem inteira ouvindo sem parar essa música, o que era trabalhoso para repetidamente rebobinar diversas vezes até uma faixa específica. Quem teve o mínimo de contato com as fitas k7 sabe o que estou falando. Passei anos sem ouvir Nirvana. Meu CD do Nevermind (o primeiro ou segundo que comprei na minha vida, não me recordo qual foi o primeiro entre este e o Apettite For Destruction do Guns N Roses) acabou perdido em uma de minhas várias mudanças, junto com outros discos formadores de meu caráter musical. Hoje, por alguma razão pensei nessa música, e percebi que ainda soa incrívelmente bem. É uma pequena obra-prima do rock and roll, com uma ótima letra. Valeu, Cobain.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Me queira bem.

Há quem diga que bêbados são sábios ou incovenientes. Incovenientes são mesmo, é fato. Sábios, só até quando o álcool permite. Algumas horas depois daquele gole, a gente parece que sabe de tudo, tem a verdade absoluta. Eu estava um pouco assim hoje. Eu estou um pouco assim.
Cada gole, uma lembrança boa de você, uma vontade imensa de cuidar de mim, de ser melhor para mim, para os outros. Vontade de continuar a sentir encantamento, dádiva de algo que não se repete. Uma pessoa, outra pessoa: Deus em algum lugar.
Alguns drinques, uma noite sem grandes expectativas. Acontecimentos banais.
Espero que você não esteja detestando tudo isso: é boa a sensação de não sentir vergonha de nada que eu seja capaz de sentir.
Acabo de ver coisas, ouvir coisas. No filme, há um princípio da coincidência regendo tudo. Um princípio que explica as precariedades da vida. Não sei se há coincidências, acredito que há sol até nas noites.
A vida segue, o belo é que nós não somos descartáveis. Há alguém muito perto do outro, que olha, que observa. Faz sorrir. E há alguém que está, mesmo sem ser, como se não precisasse, imperceptível.
Tenho um jeito meio desajeitado de dizer as coisas, meio prolixo, meio cheio de curvas, um jeito tão sem precisão que me faz ter vergonha de fazê-lo. Não: decidi não sentir vergonha de nada que eu seja capaz de sentir.
E essa madrugada? Eu, sinceramente, acho que o tempo vai fazer eu me esquecer de você e você se esquecer de mim. Por isso, escrevi isso. Para deixar registrado.
Eu me sinto melhor com tua presença. Aí. Aqui. Acima das nossas cabeças.
Fique feliz, fique bem feliz, fique claro. Queira ser feliz. Te envio as melhores vibrações.
Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas, que seja bom o que vier: para mim, para você.
Te escrevo isso por absoluta necessidade de sinceridade. Hoje tem noite e amanhã tem sol.
- Me queira bem.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O que foi que você fez com a lua?

Não sei o que você fez com a Lua. Não sei mesmo. Mas alguma coisa... está diferente. O formato mudou. Não vejo mais um sorriso debochado, uma banana meio mordida ou um grande naco de gorgonzola. Bola de golfe, também não. Na verdade, nunca enxerguei com tanta clareza que ela é um satélite natural que gira em volta do seu próprio eixo. E que chato que isso é. Que entediante é essa Lua que você me deixou. E - você sabe bem - não fujo da Lua, pois ela sempre se pendura naquele cantinho da janela em frente à cama. Se fecho o quarto, ela continua me espiando, com sua chatice entrecortada pela veneziana. Umas seis camadinhas de puro desgosto. Não sei mesmo o que você fez. Mas sei da falta que me faz.