quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Pra você

Querido,

de novo estou atrasada. E de novo posso arrumar inúmeras justificativas injustificáveis. Não sei se está incomodando você esse tempo em que não estamos tendo para falar de coisas corriqueiras. Pra mim, tá começando a ficar bem chato. Porque gosto de saber das coisas comuns, se você está aproveitando o seu tempo para o trabalho artístico ou procurando algum, se está lendo algum livro, pra onde tem ido, que filmes tem visto, se já escutou aquele álbum do Gun's que ficou faltando. Só não tenha dúvidas de que acordo pensando em duas coisas: preciso escrever e preciso falar com você.

Hoje, em especial, gostaria de estar perto de falar de como estou me sentindo. Acho que estou perto desse fim de balanço. E, talvez por isso, não tenho tido assunto suficiente para transformar em um texto. Você inventa histórias e eu só sei falar de mim mesma. As poucas que criei não chegam a fazer número para eu poder acreditar que também consigo.

Como acabei transformando nossos diálogos num meio de vomitar todas as dores que me incomodavam e após tantos anos eu me colocando como a personagem principal de quase tudo que está escrito aqui, parece que esvaziei. E agora? Além de atrasar nossas conversas, transformei nossa companhia em consultório sentimental.

Joguei em você muita coisa que estava agarrada e posso dizer que me sinto melhor – mas que fique bem claro, foram anos pra me recuperar de um tanto de trancos. Não consigo ser feliz em dez lições. Dez mil, talvez.

Quero comentar com você o último filme que vi, uma animação bastante inteligente. E saber se você gostou tanto quanto eu. Quase não tenho saído, e agora com o trabalho que me consome, preciso me desdobrar.

Fui no restaurante que éramos para ter conhecido, adorei. O lugar é bem bonito e a comida não decepciona. O preço é meio desonesto mas os garçons são sorridentes. Precisamos ir qualquer dia.

Seu aniversário está próximo e torço muito para que comemoremos juntos, é algo que não pode deixar de acontecer.

Estou meio lerda para formular ideias, tenho trabalhado, ou melhor, executado um sem número de peças. E como estou novamente fora de minha praia, me perco, morro de medo de esquecer alguma coisa, tenho sonhos com clientes brigando comigo e na verdade eles brigam mesmo. Não sei lidar muito bem com isso, fico um tanto quanto atormentada.

Minha mãe vai tirar férias daqui a alguns dias e sinto que nosso tempo já está perto da data de validade. Todo ano é igual. Alguma coisa entre a gente é frágil, em menos de um mês já estamos nos tropeçando. Depois de novembro, ela volta para as atividades. E eu volto a ser dona do meu espaço.

Além desta carta, iniciei outros textos, e vou deixá-los prontos para não passarmos por isso novamente. Cansei de sentir que estou atrasada.

Miss you,

sábado, 6 de outubro de 2012

Circunstância


É uma tarde preguiçosa. Um dia atípico em que se fica totalmente livre. Você ganhou uma folga ou ficou doente, com o tempo feio que faz lá fora, a sua tarde se resume a você e às quatro paredes do seu quarto.

Você deita na cama com o laptop na barriga, ouve o barulho da chuva e, de vez em quando, olha para a TV ligada e quase esquecida.  Entre uma zapeada nos canais e uma caneca de café, você se pega assistindo à Sessão da Tarde. O filme já começou e você provavelmente já perdeu o primeiro bloco. Mas tudo bem, você sempre quis ver aquele filme, ele não foi nenhum sucesso de bilheteria, não foi pra Cannes, mas você curte aquela atriz, ela tem pernas bonitas, é engraçada e tem ótimas tiradas. E você se toca que nunca assiste à Sessão da Tarde porque é uma pessoa ocupada, seu tempo é curto e, se não fosse a chuva ou a gripe, certamente você estaria na rua fazendo outra coisa.

A história é boba, mas te prende a atenção, te envolve, te arranca uns sorrisos. É, você gosta do que vê. Até que o filme acaba e você pensa “até que foi legal, mas é só mais uma comédia romântica”. E comédias românticas são feitas pra isso, para as tardes livres de solidão. E verdade seja dita: daqui a meia hora, você já esqueceu do que viu.

Sejamos francos, você nunca iria ao cinema pra assistir a um filme desse tipo, não convidaria um amigo para vê-lo, não tiraria o carro da garagem pra isso. É desses filmes que te valem duas horas de entretenimento sem compromisso. E eu me sinto assim, a sua Sessão da Tarde, a sua companhia sem muita expectativa ou grande emoção. Como um desses filmes que não valem o ingresso e, de tempos em tempos, tem reprise garantida. Aí você me assiste de novo, me sorri de novo e me esquece de novo.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Escolhas


Eu estava deitada, meio doente, na cama da minha avó. Acho que eu tinha uns cinco ou seis anos. Ela estava pronta para sair. Passou pelo quarto e disse: tchau, la. Eu olhei para ela, triste e pedi: té, fica, vai. Ela disse: está bem. E ficou. Sou profundamente agradecida a ela por isso até hoje. Às vezes é tão bom ficar.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Desejo inconsciente


O sonho começa comigo mascando chiclete.

Possui sabor de tutti-frutti, daqueles que só havia na minha infância. Ele ocupa toda a minha boca. Com o tempo o sabor original se mistura a tudo que o ato de mastigar sem engolir drena de meu sistema digestivo, e o doce se torna ácido, azedo. A essa altura a goma já havia crescido e ocupado tudo, grudado em meus dentes, em minha língua, no céu da minha boca. Já não é possível me livrar do chiclete com um simples esforço.

Levanto pra ir ao banheiro e separar a goma de minha boca. Não há caminhos até o banheiro, gera um corte de cena e me vejo debruçada na pia, mãos dentro da boca para desgrudar o chiclete, que demora a sair. Quanto mais eu puxo, mais parece que sou eu me despedaçando ali. Já não há mais a cor falsa da goma tutti-frutti. A porta começa a balançar e mal consigo grunhir para avisar que o banheiro está ocupado.

Saio do lavatório ainda com a boca ocupada, sem conseguir me expressar. Um homem grisalho e de suéter, me repreende. “Depois desse tempo todo, você ainda não conseguiu?” Abaixo a cabeça, e ao levantar a vista me deparo com um avião vazio. Poucas pessoas ocupam lugares esparsos. De vez em quando uma se levanta, se dirige para a porta e pula. Ninguém parece se incomodar.

Olho pela janela e vejo apenas o céu matinal, tanto aos lados quanto sob o avião. Pergunto à comissária se ainda é dia. “Ainda é dia, mas não é mais cedo”. Questiono a altura em que nos encontramos. Ela ri. “Altura? Acho que ainda nem saímos do chão”. Respondo com dificuldade, “E esse azul sob a gente? E esse céu?” “Céu? Eu só vejo chão”. E saiu de perto de mim para ir até a porta e pular.

Me sento ao lado de uma senhora idosa. Ela me diz que adora conversar, mas que está cansada e quer apenas ouvir uma canção. Faço sinal negativo com a cabeça; não consigo nem mesmo balbuciar a frase explicando os motivos de não poder mais cantar. Ela se irrita e diz que não canto porque não quero; se levanta, vai até a porta e pula.

Vou até a porta também. Olho para baixo e vejo o mesmo azul sem fim, sem norte, sem referência, sem profundidade. Um homem para a meu lado e diz que é gostoso pular, mas que eu não deveria fazê-lo. Minha vontade é perguntar por que só eu não devo, ou se ninguém deve, ou o que há de gostoso no azul, ou por que não consigo falar. Em vez disso, olho para ele e aponto minha própria boca. “Você pôs na boca o chiclete, não? Então fique firme e continue no avião”.

Com muito esforço, pergunto apenas “Por quê?” Ele me responde: “Se você sair não há mais avião”, e me puxa para trás.

Caio de costas em minha própria cama, suada, com um filete de sol em meu rosto. Ainda é dia, mas não é mais cedo.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Nada


Não, nós não temos nada. Não somos nada um do outro. Semana passada vimos um filme péssimo, um dos piores que eu já vi e a minha vontade no cinema era de deitar a cabeça no seu ombro e viver. Se passassem dois anos, eu não notaria. Não chegamos a sair de mãos dadas do cinema, não temos esse hábito. Nos esbarramos várias vezes, nossos braços se batem de uma forma que se fosse em qualquer outra pessoa, me incomodaria muito. Mas não em você. Você adora.

Nós não somos nada, então não nos beijamos em público o tempo todo, só às vezes. Fomos tomar sorvete e você estava sem barba, nessas horas eu penso que se nós fossemos alguma coisa, eu nunca deixaria que você tirasse a barba, mas não posso dizer mais, senão vou ter que revelar que acho você incrivelmente lindo do outro jeito e eu não quero – ou não posso – me entregar assim.

Quando você disse que gostava de mim – bastante – a primeira coisa que eu senti foi verdade, mas logo veio um medo. Você diz coisas que não fazem o menor sentido e discute assuntos que eu não quero nem ouvir e então eu dou graças a deus por nós não sermos nada. É tão mais fácil. Mas aí acontece de eu não querer dormir sozinha de jeito nenhum e pensar em ligar pra você. Uma parte de mim, confesso, preferia que você não atendesse, mas você atende e vem até aqui e nós assistimos ao nosso preferido juntos. Rimos alto e nos olhamos, procurando a alegria compartilhada. E ela está ali, no sofá, esparramada, à vontade. Meu relógio anda em pulos e só durmo quando amanhece. Interrompo raciocínios com beijos afogados e desesperados e pausados e pesados e saudosos.

Estou cheia de nada, enquanto me preparo para o vazio de amanhã.

sábado, 15 de setembro de 2012

Conselho


Foda.

Foda os seus dias de pessoa vacilante e medrosa. Foda o menino com espinhas que não teve coragem de te namorar. Foda os dias de sol forte na praia e a vontade de tirar o biquíni pra cair nua no mar. Foda o autoritarismo de quem acha que pode mais. Foda o desejo de abandonar o escritório e ir ao cinema comer pipocas.

Foda o relacionamento enrolado tão difícil de cortar. Foda a amizade que é só amizade. Foda o amor que é menos que amor. Foda a noite só em frente à televisão ou na internet fuçando na rede social. Foda o pânico da solidão. Foda o que só se repete. Foda o livro há semanas na cabeceira. Foda a idade, a vaidade e a maldade que às vezes aflora e te deixa sem eira nem beira.

Foda a raiva, a tpm e o rancor. Foda o desejo de dar agora. Foda o sexo em si, a coisa em si, e não saber o que é o ser-para-si. Foda o que não vai para frente, a pedra no meio do caminho, o que ficou para trás, o impasse.

Foda muito. Foda-se.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Constatação


Quando estiver amanhecendo e eu acordar, antes mesmo de a consciência perceber que horas são, preciso me lembrar do seguinte: as flores que nascem nos telhados não estão em seu ambiente natural, mas estão mais próximas do céu. Quando estiver amanhecendo e eu acordar, basta me lembrar que não importa qual dia é hoje. O que importa é que é o princípio de alguma coisa.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

(re)Mar


Tem dias em que penso que preciso mesmo é de um barco.

Quando era criança, costumava me sentar na beira do mar com meu tio e jogar pedras nas águas paradas. Costumava comprar um picolé de morango e um suco sem açúcar, com gelo.

Mais tarde, a vida me afastou do mar e do meu tio, e eu fui boiando por aí. Mas nada parecido com o boiar tranquilo de quem se deita com a barriga para cima, olhos fechados, sorriso tranquilo. Era mais um boiar pré-afogamento, apenas a cabeça fora d’água, braços e pernas se sacudindo para evitar os golpes de mar no rosto.
Tem dias em que penso em trocar tudo por um barco.

No meu boiar atrapalhado consegui juntar uma série de coisas: inseguranças, mágoas, traumas. Consegui também juntar dinheiro. Pouco dinheiro. Mas o suficiente para um barco. Para algum barco.

Comprei um barco. Algum barco. Mas o mar não era mais o mesmo. As águas não estavam mais paradas, as pedras não gostavam mais de quicar e desenhar círculos perfeitos. Ninguém mais me vendia picolés de morango. Ninguém mais me pedia sucos sem açúcar, com gelo.
 Percebi então que mesmo antes desse barco eu já tinha um barco. Eu só não tinha remos, e meu novo barco veio sem remos, e me cansei de ser uma pessoa que tem barcos mas não tem remos.

Pensei então em pular do barco. Dos barcos. Dos dois. No meio do mar que não é mais parado.

E isso seria, talvez, a primeira remada de minha vida. A primeira e a última.

Tem dias em que penso que tenho é barcos demais.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Verdade camuflada


Declaro que faço parte dessa juventude de olhos cegos, mãos atadas e pensamento paralítico. Declaro que, no direito inalienável do meu silêncio, compactuo com todas as atrocidades cometidas diariamente contra toda sorte de pessoas: da fome ao preconceito, do desemprego à depressão. Declaro ainda que, como representante da classe, penso apenas em mim, nas minhas coisas e nos meus objetivos particulares. Desde cedo, aprendi que a felicidade é algo que devo buscar por mim mesmo, algo que não pode ser construído coletivamente.

Prefiro indiscutivelmente ser um indivíduo a ser um cidadão. Esnobo a puta e o mendigo, não os encaro. Percebo que sou frágil; tenho medo, muito medo. Da morte, da solidão e da polícia. Não vou às ruas. Não tenho causas nem preceitos. Não vejo motivo para protestos porque acho que as coisas estão indo sempre muito bem. Declaro que não sou conservador nem liberal, porque pouco sei da política. Como todos os outros, reclamo por entre os dentes, digo que o Brasil não vai pra frente mesmo, que os políticos são todos uns safados. Declaro que acredito na verdade que me chega pela televisão, não preciso de outras fontes.

Minhas músicas são meu combustível diário, coloco os fones nos ouvidos e afasto-me da realidade, crio uma barreira entre mim e o que acontece ao meu lado. Declaro que sou guiado pelo prazer a qualquer custo, a qualquer tempo. Sempre corro, não sei de quê, não sei pra onde. Prefiro não saber o que nos move à frente, ou ainda, o que não nos move. Declaro que faço parte da massa pálida e descafeinada que engrossa as filas de emprego sem se questionar e sem protestar. Somos uns cordeiros, todos. Tenho fé ainda de que a felicidade virá na caixa do Sucrilhos do dia seguinte. Declaro que meu projeto mais ambicioso é erguer minha casa de gramado verde e cercas brancas e construir uma família onde vivamos todos tal e qual o comercial de margarina.

Eu, filho do carbono e do amoníaco, espero sempre. Pelo beijo ou pelo escarro. De minha face, contudo, nenhum músculo se moverá. Declaro, em nome de todos que represento, que optamos por ser assim, que é nossa escolha estar sempre indiferente ao que quer que seja, que temos até um certo orgulho em não sermos mais do que pedaços inertes de plástico.

sábado, 7 de julho de 2012

Âncora transparente


Sempre quis ser feliz.

Ao conhecer a felicidade, passei a defendê-la. Passei a me acostumar com ela e procurá-la onde já a tinha encontrado. Não procurava onde não a conhecia. Eu gastava a felicidade de antes, a que existia em momentos anteriores.
Minha felicidade logo virou a desconfiança de que os demais cobiçavam. Logo virou a suspeita de que não poderia ser feliz, obrigada a me conter. Caso demonstrasse, estaria esnobando. Alertando os ladrões. Não podia sair mais com a minha felicidade. Escondia em casa, atrás dos livros.

Sem felicidade, aprendi a viver com a lembrança dela. Estava quase feliz, remotamente feliz, pois poderia retornar à felicidade de noite. Retornar à felicidade era meu jeito de ser feliz. Ou de parecer feliz durante o dia.

Fiquei assustada quando alguém me falou que eu não era séria, que precisava ser adulta. Tentei ser feliz e não rir. Logo, esquecia que estava feliz e permanecia somente séria.  A concentração para não rir me tirou a vontade de falar.

Complicado o negócio de ser feliz. Desisti, portanto, de minha felicidade para deixar os outros felizes. Abri mão das coisas. Quando um ou outro estava feliz, eu não pensava em minha felicidade. Nem que a tinha escondido para nunca mais rever. Já não me lembrava onde estava: atrás de que livro? Que autor? Qual estante?

Não me constrangia em esperar. Até que bateu um remorso por não ser feliz sozinha, afinal todos são felizes sozinhos. A dependência me doía. Eu tinha que esperar que fossem felizes para me acalmar. Não que tivesse deixado de ser feliz, eu esperava o reconhecimento deles para então perceber que fui feliz.

O mesmo remorso de uma dona-de-casa depois de arrumar a bagunça, sentar na cozinha, descobrir que o minuto de seu sossego é o cigarro e que todo mundo vai esperar a casa limpa, como sempre, e nada será comentado. Porque a casa limpa é invisível, como a felicidade.

A felicidade deles tornou-se minha infelicidade. Fui cobrando a devolução dos dias felizes que dediquei à felicidade deles. Pedindo a devolução das minhas semanas, uma por uma. Não conseguia diferenciar o que era meu do que era deles.

Minha felicidade não era infeliz, mas sem assunto. Confundi sem assunto com infeliz. Não tinha o que contar de mim, só deles. Eu era mais a promessa de felicidade deles do que o meu passado.

Eles foram ficando tristes porque minha felicidade não aparecia. Nem depois. Nem como véspera. Eles não sabiam como devolver minha felicidade. Porque a felicidade deles também era me fazer feliz.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Termostato

O saudável esquecimento da dor parece implicar também, e necessariamente, no esquecimento do prazer. Isso faz surgirem algumas perguntas: será que o esquecimento da dor (de toda dor) é mesmo saudável? E será que o prazer também é esquecido porque sua lembrança provoca o medo de mais dores? Será que quem consegue esquecer a dor teme também o prazer?
Uma espécie de termostato da memória parece ligar a dor e o prazer como sensações que guardam certas semelhanças, seja por efeitos físicos, psíquicos e até de origem supersticiosa ou cultural, não sei. Sei que, por isso, temo esquecer a dor. Temo que, com isso, minha economia mental me proíba de lembrar do prazer.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Chiclete


Na maior parte das vezes é um trecho de música, mas pode ser também fala de filme, verso de poesia ou uma frase solta, sem qualquer sentido aparente – é o que, na falta de nome melhor, chamo de pensamento chicletoso. Ele chega sorrateiro, você nem percebe: quando se dá conta, já está lá, instalado no trapézio da consciência como uma visita na poltrona da sua casa, numa tarde de domingo, grudado aos seus neurônios como chiclete na sola do sapato.

Dia desses, por exemplo, acordei com dor de cabeça, entrei numa ducha fria e, assim que a água bateu na testa, revolvendo ideias há muito adormecidas nas catacumbas da memória, vi-me repetindo, inteirinha, a fala do vilão de um dos piores desenhos animados que já existiram, Thundercats: “Antigos espíritos do mal, transformem essa forma decadente em Mumm-Ra! [Pausa] O de vida eternaaaaa!”. Faz quase quarenta e oito horas que, a cada vinte minutos, mais ou menos, minha vida é interrompida pela evocação maligna de “Mumm-Ra [pausa] o de vida eternaaaa!”. É como um vício: cigarro mental ao qual volto inúmeras vezes, do momento em que abro os olhos até a hora de fechá-los novamente.

Há pensamentos chicletosos que somem depois de um tempo, mas outros ficam para sempre, agarrados aos rabinhos dos neurônios. É o caso, por exemplo, de um trecho da trilha sonora de Pulp Fiction, que contraí ao assistir o filme, numa remota noite e, desde então, vai e volta das trevas para a consciência, da consciência para as trevas, ao seu bel prazer: “Get Down, get down! Jungle booggie. Tananananã!”. (O tananananã é a parte instrumental). Estou cansada. No meio de uma aula importante: “Get Down, get down!”; enquanto espero o ônibus no ponto: “Jungle Booggie!”; com a cabeça no travesseiro: “tananananã”.

De todos os exus mnemônicos com quem convivo, contudo, os piores são as músicas infantis. Minha mãe não sabe, mas no almoço de ontem, enquanto discutíamos uns pormenores sobre o vazamento no box do chuveiro, meu ar de cansaço nada tinha a ver com a preguiça de resolver os perrengues domésticos: era o resultado de uma manhã inteira ouvindo, ininterruptamente, “serra, serra, serrador, serra o papo do vovô”, no maldito rádio instalado dentro do meu cérebro. “Atirei o pau no gato” eu canto tanto, mas tanto, que já não me basta o português. “Atiré el palo en el gato…” ou “I threw the stick on the cat” são a música de fundo de boa parte dos momentos que passo acordada.

Outro dia, tive a mórbida alegria de descobrir que meu ídolo, Julio Cortázar, também sofria de acessos semelhantes. Numa crônica do livro Um tal Lucas, o escritor argentino conta que, no meio de um banho, pegou-se dizendo, com “visível prazer vingativo: Now shut up your distasteful Adberkunkus!” (Agora cale-se, seu intragável Adberkunkus). Só no fim da chuveirada, depois de repetir a admoestação várias vezes, foi se perguntar quem, ou o que, seria um Adberkunkus.
A alegria por saber que minha loucura era compartilhada pelo ilustre escritor, contudo, durou pouco: mal fechei o livro e abri a geladeira para pegar uma coca, me vi gritando, mentalmente: “Agora cale-se, seu intragável Adberkunkus!” – em português, inglês e espanhol.

Já desisti de me curar. Encaro como uma doença crônica, que vem e vai. O negócio é tocar pra frente – “get down, get down!” -, aproveitar bem os intervalos – “serra o papo do vovô” – e tentar ser feliz assim mesmo – “jungle boogie”–, sabendo que certas coisas não se calam, por mais intragáveis que sejam, e por mais que imploremos em todas as línguas, conhecidas ou inventadas – “tananananã.”

Confissão

Hoje olhei longamente uma frase sua. Só olhei. Ela não dizia nada de importante, mas ela era você, cada palavra um pedaço seu, uma coisa que saiu da sua cabeça, das suas mãos, da sua vida. Eu olhei tanto pra essa sua frase que quase me confundi toda dentro dela, mas você não sabe disso, você não me conhece. Pensei em escrever algo. Não adiantaria nada. Porque você não me conhece e uma frase minha precisaria dizer tanta coisa que não caberia numa frase, nem em muitas.

domingo, 17 de junho de 2012

Teatro

Pode ficar calmo, dessa vez estou mais dengo do que dentes. Melhor se descreve o que se tem perto dos olhos (façamos com os sentimentos), de longe, inventa-se mais (bom para literatura, não para viver cotidianamente com saúde). Posso rir das gaiolas, porque me fiz em uma delas. Nós dois somos falatório. Nossos monólogos, coletivos. De certo modo, estou dançando com você a valsa das pegações. Já fiz das tripas coração, agora estou aprendendo a pensar. Sei que estou em guerra, e vencendo, porque pela via do afeto (esta frase é todo o meu currículo arrogante). Mas nem sei se sou uma muher, ou se só um corpo de neblina. Chegou o inverno, mas o dia sempre amanhece, uma espécie de ressurreição até para os vampiros.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Agelastos

Tenho medo de sapo; de raio; de guerra; do bolo queimar; de contemporizar demais; da minha raiva; da saudade. Mas do que eu tenho mais medo, mais medo mesmo, é de uma coisa que eu acabei de aprender com o Milan Kundera: os agelastos, aqueles que não sabem, não querem e não gostam de rir.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Dia doze

Erros de português que adoro cometer: colocar alguma coisa "de assim"; isso é só "entre eu e você"; vou assistir "o" jogo; quero ir "no" banheiro; prefiro isso "do que" aquilo; o peixe tem "espinho" e o melhor de todos, que deveria ser considerado correto, em nome do amor: "fica comigo".

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Valores

Imagine que tenho uma mala muito pesada com um milhão de moedas de ouro. As alças ficam penduradas no meu pescoço, me forçando a cabeça para baixo, retesando os músculos do olhar pra frente.
Vez ou outra, uma pessoa da rua passa e tenta me roubar. Mas, por mais que esteja tão pesado e doendo e estragando a minha coluna, luto até a morte pra proteger a tal da mala. Automaticamente me atiro contra o chão, como se protegesse um filho das balas. São terríveis esses quilos centralizados no ponto mais fraco do meu corpo, mas pra violência a gente não entrega nem os fardos.
Também, às vezes, uma pessoa da rua se oferece pra carregar a mala pra mim. Ou pra guardar em sua casa. Ou pra dividir o peso ao estilo “uma mão em cada alça”. Também não consigo entregar meu arqueamento e tamanho para essas pessoas. O amor gentil nunca me conquistou. Gentileza é coisa pra quem nunca será íntimo. Solidariedade é coisa pra campanha política. Felicidade é pra quem se conforma em ficar num lugar só porque está bom.
Mas muito de vez em quando, como acontece, aparece uma pessoa que não me pede nada e pra quem eu tenho vontade de entregar cada moeda da minha mala com um milhão de moedas de ouro. Tome, leve, gaste, use, encha a sua banheira com elas e depois me mande uma foto.
Eu sou uma mendiga ao contrário.
Não são por essas coisas que não se ama. Não são por essas coisas que se ama. Essas são apenas as coisas sobre as quais conseguimos falar na nossa ânsia de ocupar a cabeça enquanto nos encaramos um pouco assustados.
A verdade é que, no meio da multidão, estamos carregando nossas malas pesadas de riquezas e belezas e sentimentos. E uma hora, só porque acontece e não se pode explicar sem parecer ingênuo e arrogante, escolhemos uma pessoa que nos leve.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Nada

Originalmente, pena é o mesmo que punição. Quem merecesse pagava uma pena, ou um preço que corresponderia à punição pela falta cometida. As coisas que valem a pena, dessa forma, valem a punição que elas implicaram. Se pensarmos bem, portanto, só vale a pena na vida o que não vale pena alguma, pois aquilo que implica em pena não vale nada.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Piano

Só outro dia aprendi que blue note é a nota triste, associação que eu nunca tinha feito antes. Me contaram que essa nota é uma herança das escalas musicais entoadas pelos africanos em suas canções de trabalho. Assim, numa melodia diatônica tradicional do ocidente, a nota triste soa como uma nota inesperada na linha melódica, uma terça, uma quinta, ou uma sétima mais para baixo. Quando o ouvinte espera um intervalo maior, vem esse intervalo menor e é essa diminuição do tempo entre duas notas que é triste. A tristeza, ou melhor, a tristeza azul, é a diminuição do intervalo esperado.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Exit

Fecho os olhos pra não ter mais que te escutar, seus sussurros são opacos demais, suas palavras perdem a transparência no momento em que começa a colorí-las. Assim tão próximo, seu corpo transforma-se em borboleta, colorido e repugnante, não é a cor que vai te tirar da posição de inseto, nenhum fingimento pode fazer desaparecer as escamas que carrega nas asas. Suas palavras, entretanto, são mariposas, grotescas ao olhar de perto, porém leves, tranquilas de ouvir de longe; não tentam fingir uma beleza que não têm. Me agrada a sua polinização sincera e desengonçada, monocromaticamente correta em uma natureza fútil e espalhafatosa.

Fecho os olhos e você desaparece, junto com a paisagem, junto com tudo o que eu já quis que você fosse; talvez eu valorize demais as palavras em detrimento das imagens, porém, devo confessar, não sei colorir seus parágrafos dentro das linhas e acho também que ninguém te ensinou a falar colorido sem se borrar.

A solução é ouvir em preto e branco.
O caminho mais curto é me cegar pra tua voz, mas não se perca em um conceito de desafio, há muitos anos coleciono rouquidão, isso é tão ridiculamente fácil, é preciso apenas juntar todo o tempo em que se fecha os olhos pra piscar para ficar a maior parte do dia sem enxergar.

domingo, 27 de maio de 2012

Espera

No romance "A fera na selva", de Henry James, John não se dá conta de que o objeto de sua espera infinita esteve a vida toda diante dele próprio. A espera é um tempo narcísico e inflado; ocupa tanto todos os espaços do esperador, que o impede de ver além da espera. O esperador compraz-se tanto em ser sujeito e vítima da espera, que a realização de seu conteúdo pode, para ele, não passar de frustração.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Presença

Por algum tempo (pouco que seja) estar longe de si, ausente de si, sem saber qual é o sentido de se ter o nome que se tem, o tamanho, o peso, o volume. Ser uma presença sem ideias e passar.

domingo, 20 de maio de 2012

Medida

Um silêncio de algo que está sendo não dito, diferente do silêncio de nada estar sendo dito, do silêncio carregado de si mesmo, do silêncio de tudo estar sendo dito. Um é poder, outro é apatia, outro é autonomia, outro é pacto. O silêncio é um alfabeto dificílimo. Não há dicionário nem método para aprendê-lo. Para se comunicar com um silêncio a língua de acesso é o tempo e, com sorte, o olhar. Falar atrapalha. Diante de alguns silêncios é preciso tomar cuidado. Outros não querem cuidado nenhum. Para uma hermenêutica do silêncio, a melhor medida é respirar.

sábado, 19 de maio de 2012

Anticoagulante

Acontece assim: eu corto os seus pulsos, a culpa vai parecer toda sua, corto seguindo o curso da artéria radial, quero fazer uma bagunça. Eu gosto de sangue. Eu gosto do seu sangue. Quero beber, colocar em um balde, derramar pela casa. Rolar no teu sangue, é isso o que eu quero. Mergulhar em piscina de plasma e enxergar através do seu vermelho, enquanto você cai debilmente na cama, quero nadar nas suas veias.

Sonho todas as noites em tirar sua vida com os dentes, usar os caninos para te rasgar em todos os pulsos principais. Por você, eu não beberia nada além de sangue, nada além do teu sangue, nem mesmo água, e estou com tanta sede, cinco litros de você só vão servir para engrossar minha saliva, tirar a minha água enquanto você sangra no colchão, mas não me peça para tirar também minhas máscaras, não quero acelerar a desidratação.

Seu corpo já está morto, inerte, pálido, chupei sua carótida como uma tangerina e continuo te deixando sangrar mesmo depois de passado o prazo de validade. Antes de beber, encho as tripas de heparina para te impedir de coagular dentro de mim, é muito do seu sangue para pouco ácido no meu estômago, a qualquer momento posso ter uma indigestão, mas ainda assim quero sua estirpe bem viva no meu esôfago e intestino, meu sangue e teu sangue com apenas uma camada de músculo liso para separar, quero me banhar nas suas feridas abertas para que elas não tenham tempo de cicatrizar.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Perda

Achei que tinha perdido as chaves de casa, mas não perdi. Achei que tinha perdido os óculos, mas estão comigo. Mas perdi um livro, um caderno, um colar, uma canga, uma ideia, uma parte da memória e, ontem, uma vontade que anteontem eu sentia de abraçar alguém.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Fechadura

Uma fechadura tem vários buracos. Uma pessoa tem todas as chaves para abrir esta grande fechadura. Mas ela não consegue enfiar todas as chaves nos buracos correspondentes de uma só vez. Ela tenta então colocar uma de cada vez. Mas quando ela acerta uma, a outra se trava, porque a fechadura só aceita que todas as chaves sejam colocadas simultaneamente. A pessoa estuda, durante muito tempo, as coincidências entre os dentes das chaves e os orifícios de cada entrada. Mas não consegue segurar tantas chaves nas posições corretas de uma só vez. Cria então um mecanismo de suspensão das chaves nas posições certas, insere-as e coloca-as todas em suas entradas correspondentes ao mesmo tempo. A porta se abre, mas já se passou muito tempo para que a função cabível fosse cumprida.

sábado, 5 de maio de 2012

Quando o hard rock sabia amadurecer

     Quando se fala em Led Zeppelin, o que vem a cabeça de muita gente é Starway to Heaven. Música batida, e muito. Mas é inegável de que se trata de uma obra-prima e umas das mais belas canções da música universal. Porém, não irei comentar e muito menos analisá-la. Como toda banda decente deste infinito universo de música boa, eles cresceram. O disco House of the Holy, de 1973, é o amadurecimento da banda. Particularmente é o disco que mais gosto, porque é uma enciclopédia musical dos anos 1970. Não que tenha o melhor da banda neste disco, mas ele não é nem pesado, nem leve, nem agressivo, nem amoroso. É um álbum para ouvir em qualquer situação.
      Led Zeppelin foi além do Hard Rock. O disco começa com um verdadeiro soco na cara. Uma mistura ousada do rock pesado com progressivo. Jimmy Page está em sua melhor fase. Suas trilhões de guitarras se tornam uma única melodia. A bateria de John Bonham e o baixo de John Paul Jones mostram autoridade, como se eles fossem o dono de toda essa atmosfera. E até são. Já que citei Starway to Heaven, The Rain Song  também entraria fácil na lista das músicas mais belas do homem. A voz melancólica de Robert Plant vai crescendo e se torna parte única de uma música que parecia até então, sem grandes pretensões. Assim como em Over the Hills and Far Way, parece ser uma balada acústica, e de repente tudo cresce.
      O amadurecimento deles fica muito evidente devida a diversidade de estilos que há no disco. O funk The Crunge é um bom exemplo. E não só pela levada, mas pela harmonia, dinâmica e arranjos. Além de citar, por justa causa, frases de James Brown. E por falar na diversidade, eles provam que boa música pode sim e deve ser simples. Dancing Days é uma gostosa canção. Daquelas que qualquer versão que ouvir vai ficar boa. Como se estivesse no balcão de um bar e um cara com violão começasse a tocá-la. E por falar em viagens entre estilos, nada como citar o único hit deste disco: D’yer Mak’er. Um reggae. E ninguém pode exigir mais do que ela é. Porque é maravilhoso ver uma banda inglesa querendo brincar em um estilo do qual não fazia parte da cultura, até então. E brincaram muito bem. No Quarter mistura progressivo, rock e psicodelismo. Led Zeppelin mostrando que o rock não estava envelhecendo.
      O disco fecha com The Ocean. Um ótimo riff de guitarra e melodia bem roqueira, para ser sincera. Ela tem uma atmosfera “ao vivo”. Ou seja, parece ser gravada com todos os instrumentos ao mesmo tempo. Uma bela despedida para uma obra-prima da música. E como despedida, ao final desta canção, entra uma melodia festiva. Lembra muito os melhores momentos dos Beatles. Como se fosse um “boa noite” de um show que valeu a pena ir. De um disco que vale a pena ouvir.
      O único fato lamentável desta bela época do rock, é que adolescentes que vivenciaram discos como o House of the Holy não souberam evoluir. E já crescidos, nos anos 1980, tocavam e se vestiam melhor que sua mãe e irmã. Aquela geração que cresceu ouvindo Led Zeppelin e outras influências do Hard Rock, não aprendeu a lição de casa e preferiu brincar de bonecas.

domingo, 29 de abril de 2012

Acidente

E o que parecia impossível aconteceu. Ontem achei que a vida era um acidente burro: minha cadela tinha desaparecido. Fiquei impotente como um vaso vazio. Ela está muito doente e então ficamos sabendo que cães muito doentes desaparecem, não vão muito longe e ficam escondidos até morrer. Fui em todas as casas vizinhas, vasculhei quintais, acordei de madrugada pra chamá-la pela rua, chorei e me consolei dizendo que seria melhor para ela e para mim, apesar de saber que não era verdade. E hoje, no meio de um macarrão triste, ela reapareceu, como se nunca tivesse sumido. Fiquei feliz como se ela nem estivesse doente; como se tivesse acabado de nascer. E a vida, de acidente burro, virou um acidente bom. Um erro certo. Além disso, fui ao aniversário de uma das pessoas mais legais que existem. E pronto. Que bom que o mundo é circular.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Muralha

Com o som certo para as palavras e o cheiro certo para a presença, você amolece o mais duro gosto pela vida. Ainda que nada mereça uma racional lista neste momento, é como se faltasse o mais essencial ar puro e quente da minha saúde. O ar certo. E pela incoerência da vida e o delicioso gosto contrário pelo certo, esse ar, que se disfarça em puro, nada mais é que o velho conhecido gosto dos sonhos vermelhos aveludados e perfumados de cabarés imaginados.
O gosto pesado de erros soltos, expostos, e mais do que de encontro com o que palpita sem coerência mas soa em perfeição dentro de mim. O ar que bombeia as formigas de uma retardada felicidade levando sensações até para as improváveis pontas do cabelo e unhas do pé. Aquele que arrepia até as peles sem vida das camadas mais próximas à morte. As palavras saem querendo ter sentido, mas a boca se morde tamanha a vontade de abocanhar tanta cerimônia e transformar o peso ereto do humano responsável em instinto animal que corre de quatro e morde sem pedir.
Nada que eu não tenha sentido antes, ou escrito, mas mais uma vez, o que pontua minha vida em momentos e me joga para a frente pra cair de cara. Seja para chorar o inferno próximo, seja para me sufocar de você querendo todos os meus ângulos.
De energia presa num interesse congelado que grudei nos seus olhos, ainda me pergunto se minha clareza não te cegou. Minha energia em potencial, louca para cair de um longo prédio de andares divertidos e morrer tristemente no vazio de um fim certo para um sonho improvável, está zerada na espera de um estalar de dedos.
Estale os dedos e olhe para o chão. Eu estarei ali, arrastada em possibilidades e forte em atração para subir até o andar para o qual você me der asas.
Sei, como sempre soube desde que tomei noção de minha existência baseada em vôos com horas marcadas para quedas, que vou me estabacar em pedaços mais uma vez. E sei que os juntarei novamente, me jurando preservação. E, assim que estiver inteira, estarei novamente cheia de vontade de sair dando encontrões com o mundo. Este mundo que insiste em inventar leis, regras, juramentos e instituições. E insiste em perder para seres apaixonados que juram, até para Deus, que nada pode ser mais sagrado do que a fidelidade aos hormônios.
Clichês me embrulham mais o estômago que qualquer podridão que meu ladopuritano oitenta, irmão gêmeo do meu lado safada oito, tente me jogar na cara.
Aqui estou eu aberta até onde se pode rasgar, exposta até onde se pode vender e insinuando até onde se pode explicitar. E ainda que isolada de cúmplices, longe de aplausos e renegada de benção, aqui estou eu novamente servindo com prazer os meus joelhos à divindade do desejo.
Se você não puder esperar, será bem-vindo em minha ansiedade. Se você me quiser embaixo de mangas, será bem-vindo em meu masoquismo feminino nada original.
Por hora lhe agradeço. Voltaram a gritar os teclados espancados de sentidos para traduzir uma alma que já não cabe mais em seu estado natural. Agradeço-lhe o sorriso estúpido que por mais banal que seja nos faz sentir negritados em meio a tantos seres e suas aspirações. Agradeço-lhe a vontade de errar, sem ela minha vida não parece certa.

sábado, 21 de abril de 2012

Não vou pensar

Eu não vou pensar em você hoje. Não vou pensar nos seus olhos fechados, e depois não vou pensar neles abertos. Não vou imaginar como fica a minha própria imagem de cabeça para baixo, quando projetada na sua retina. Não vou pensar no diâmetro das suas pupilas e muito menos na coloração das suas mucosas. Não vou pensar na profundidade das suas órbitas ou na inervação motora das suas pálpebras. Os movimentos dos seus olhos podem pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
Eu não vou pensar nas rachaduras dos seus lábios e nem nos sorrisos que escapavam por ali, não vou verificar se tem cianose, não vou me preocupar com a sua hidratação, nem mesmo vou pensar no sabor da sua saliva e em tudo o que eu esqueci de dizer, não vou me lembrar das últimas palavras que eu ouvi de você - nem das primeiras. A sua voz pode pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
E, finalmente, eu não vou pensar no seu calor intoxicante entupindo meus poros, eu não vou pensar nas suas roupas amassadas e quentes caindo no chão, eu não vou pensar na sua febre nem no meu termômetro, eu não vou pensar em encostar em você. Eu não vou pensar em você. Hoje.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Sobre estar certo e ser feliz

Já não me lembro mais quem primeiro me fez (ou citou) a pergunta  “você quer ser feliz ou quer estar certo?”, mas não é novidade que a memória sempre nos falha na hora dos créditos.
Escolher ser feliz é algo novo e desafiador para mim, que sempre dediquei meus esforços a estar certa. Pensando, remoendo, formulando hipóteses, tentando entender, saber, confirmar.
Ter razão é uma embriaguez. Um “bem que eu disse” eterno que, mesmo que você não diga ao alvo da sua certeza, ecoa durante bastante tempo na sua cabeça, tempo demais na minha.
Só depois de bastante tempo descobri o paradoxo de que ter a razão me recompensa, mas também me persegue. E também perde a graça.
A vontade da certeza é, aliás, um paradoxo em si mesma. Em muitos momentos, o gozo da confirmação da nossa razão é ofuscado pela dor de saber que o que você imaginava que seria verdade é mesmo.
Muitas vezes, estar certo significa saber antes de descobrir, para o bem ou para o mal. A busca por ter razão nos coloca diante do momento em que sabemos que algo acontecerá e que nos fará sofrer. E esse algo acontece. E sofremos. Ter razão não salva ninguém.
Só quando me disseram esta frase (“Você quer ser feliz ou quer estar certo?”) me dei conta da obviedade de que estar certo e ser feliz não são opostos, mas também não são sinônimos. E percebi que direcionei meus esforços para o caminho errado.
Tomar decisões também é algo muito difícil para mim – isso veremos em outro capítulo – mas dessa vez, me contardocalligarizei. Resolvi que minha escolha nesta terrível encruzilhada é ser feliz.
Escolher ser feliz é mais difícil do que eu imaginei, confesso. Envolve muito respirar fundo, muito eleger prioridades e muita paciência. É um esforço mudar a chave que me condiciona a querer estar certa.
Mas apesar das dificuldades, já posso dizer que a vida é melhor do lado de cá. Há, por exemplo, um mundo mágico das brigas conjugais que se resolvem mais facilmente, porque estamos menos preocupados em ter a razão do que em entender o outro e superar a briga.
Quando estou otimista, muito otimista mesmo, chego até a achar que grandes conflitos mundiais poderiam ser resolvidos partindo desta mesma escolha.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Viagem à roda do meu quarto

Passarão horas. Pelo fio estreito dos ponteiros: passarão todos os segundos. E as paredes ainda assim resistem, como se guardassem um segredo imenso que enquanto não sei, conservam e por isso me conservam dentro do meu quarto. A cama desfeita expõe alguma nudez que já perdi, talvez feita no interior da madrugada quando os sonhos habitavam o quarto mais do que eu - sempre me pergunto se o ar fica mais grosso e irrespirável quando dormimos. É que a cada momento esse espaço desenhado por tijolos parece ter um tamanho diferente e apresentar outra face de si para mim: às vezes acordo, o quarto me olha sóbrio e, cúmplice dos meus sonos e insônias, revela que sabe de mim mais do que sei.

sábado, 10 de março de 2012

Rigidez articulada

A noite me transforma em bloco e, por muito pouco, não chego a ser de carnaval, de rua, de gente. Saio em bloco de mim, com o ranger melódico das articulações inflamadas fazendo as vezes de samba. 

A manhã se refresca com a minha rigidez. 

Amanhã, com sorte, o cimento já não vai mais estar tão fresco, vai ser mais fácil levantar, vai ser melhor, isto é, se amanhã conseguir evitar o desprazer de vir a existir. O amanhã era muito mais agradável ontem, você vai ter que concordar, quando a gente sabia que ele não existia, quando ele parecia somente mais uma brincadeira da nossa doença, quando o corpo já estava mais curto e macio pelo fim do dia. O amanhã está calcificado na sua presença de hoje, faz uma vértebra consolidar-se na outra para impedir o movimento, impedir que eu caminhe até o dia seguinte, não precisava de ajuda, eu já me arrasto para longe.
Sei que você reserva o futuro especialmente para a morte, está certo, é à ela mesmo que ele pertence, nós temos ainda esses fantasmas de nós mesmos e os glicocorticóides, não precisamos de futuro. 
Minha inflexibilidade cresce assimétrica. 

O amanhã existe cada vez menos conforme a fusão do nosso eixo axial se torna completa, mas que sorte a nossa.
Minha rigidez se renova pela manhã.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O bem do mal e o mal do bem


Eu não reconheceria o Darth Vader se o visse à paisana, mas certamente sentiria a emanação do seu mal nas entranhas. A vibração do mal pega no basal, dá dor no estômago, nó. Desarranja a configuração digestiva. Já o bem, não. O bem sempre esteve relacionado com o norte do equador da cintura. O bem romântico é o amor, a alma, a cabeça, o olhar, a respiração (em tese, por que na real, amor do bem também contém o bem do mal).

O problema não é o bem do mal, que bem administrado, rende bons aprendizados. O ruim é o mal do bem.

O mal do bem é a nossa mania socialmente aceita e considerada politicamente correta de dar força e atenção pra tudo que é ruim. Ninguém se interessa em saber se ontem um empresário em Taipei doou dez mil dólares para uma ong, mas basta descarrilar meio vagão de trem em Dudinka pra dar na CNN. E não é pela surpresa de saber que Dudinka não é apenas um ponto no mapa do jogo de War, é porque desgraça internacional tem sempre lugar garantido no jornalismo.

É velho dizer que notícia boa não vende e que por isso a mídia se concentra em notícias ruins, mas como a mídia é feita por humanos podemos concluir que problema está em todos nós. Problema, sim, porque nossa sede de sangue, a vontade atávica de conhecer a morte mais de perto, já fez muita gente diminuir a velocidade na estrada pra ver o acidente e causar novos acidentes.

Da mesma forma a ofensa nos mobiliza muito mais do que a aprovação. Ninguém muda de caminho por causa de um elogio sincero mas as pessoas são capazes de inverter a rota do domicílio por uma contrariedade. Sendo bem maniqueísta e simplista, a força do mal está na nossa incapacidade de absorvê-lo. Não comemos o mal, não fagocitamos a contrariedade, não levamos o desaforo pra casa. Ao refletirmos o mal, como espelhos, estamos retroalimentando o monstro. O monstro, simbolicamente falando, nutre-se do nosso medo do mal.

O melhor seria engolir o sapo, aprender a digeri-lo, desenvolver novas enzimas para destruir seu eventual veneno, criar anticorpos para o próximo batráquio. Comer o mal, expelir o mal do mal e absorver o que de bom ele nos ensina.

Claro, tudo isso no plano do simbólico, a menos que alguém queira comer o Darth Vader no sentido lato. Não tenho intimidade com o personagem, mas pelo que vi no cinema, Darth Vader, é espada!

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Sobre o amanhecer




Minhas pernas estão cansadas, minha mão que estava trêmula, agora desliza no que restou de meus pensamentos, no que restou de minha vontade. Meus olhos pedem descanso, minha boca pede calma, meu corpo pede um banho, minha eloquência pede uma bebida, para me livrar dos vícios, do medo, da burrice. Não enviei flores, canções bobas, a conta do fim do mês ou recados em qualquer rede social. Preferi me calar, ficar em paz com o mundo, em guerra com meu travesseiro. Preferi ser egoísta e compartilhar com minha cama a sobra da poesia com versos meus, sem rimas tuas. Tenha um bom dia.

A história completa de Ada


Ada fingiu a vida inteira mas nunca deixou de procurar a verdade. Sempre uma tosse de angústia na boca do peito. Sempre um motorzinho acelerado enjoado lá pro meio de algo que fica dentro. A língua travava de vontade de mudar todo o discurso pronto e dizer apenas a verdade. Mas qual era a verdade?


Então Ada seguia fingindo. A vida inteira. Estudou um monte de coisa que se embaralhava na sua frente, mas fingia acreditar que aquilo a levaria para algum lugar. Um lugar com novos amigos e novos projetos, talvez. Talvez essa fosse a verdade que purificaria tanta coisa sem sentido. Mas também não era isso porque, com esses amigos e projetos, Ada seguia fingindo. De fingir estudar passou em tudo que fingiu se importar. De fingir curtir as festas e os amigos e aquilo tudo, Ada vivia em álbuns felizes e acabava feliz. De fingir amar, acabou chorando e doendo e escrevendo tantas coisas bonitas. Ada seguia fingindo o tempo todo. Às vezes, com medo de morrer soterrada por tanto teatro, Ada segurava firme no fundo dos olhos de alguém e dizia: a verdade é que, a verdade é que. E a pessoa, caso fosse assim como Ada, uma pessoa especial (porque quem procura essa verdade sempre é) só dizia: eu sei, eu sei. E era isso. Um momento especial, de verdade, sem a bola de pêlo presa na goela. Sem a tosse de angústia, tentando soltar algo pro ar entrar.


Mas que algo? Então Ada ia ao psiquiatra e dizia não entender todas essas coisas que acabam acontecendo porque acontece com todo mundo. Mas pra quem? Qual é a verdade? Todos caminhando, todos com horários, todos de volta, cansados, o cérebro já bem gasto, agora podemos dormir. Pra amanhã mais e mais. E Ada ia. Como na hora do rush do metrô.


Empurrada pela multidão sem verdade pra dentro de algo que leva pra algo. Eles precisam pagar as contas, diria sua mãe.  Ter um problema sério nos ocupa de não ter o problema real. O problema real é que não dá pra calar a cabeça procurando a verdade. Onde está a saída daqui? O tempo todo essa pergunta: onde está a saída? Qual o caminho mais rápido para a minha cama, o silêncio, o escuro. Ada abraça as pernas, como criança, e se diz baixinho: não dá pra saber a verdade, não dá pra parar a cabeça, nada parece realmente o que é, hoje eu não disse o que realmente queria, aquelas pessoas não sentem aquilo que demonstram, eu pouco me importo com 70% dos preenchimentos do meu dia, mas é preciso chegar até amanhã.


É preciso chegar. Ada se formou, trabalhou, viajou, escolheu fazer a cirurgia, escolheu ver a novela ao invés do filme, escolheu dormir até mais tarde. Sem saber a verdade, Ada escolheu viver. No último segundo, até porque prometi que essa era a história completa de Ada, Ada descobriu algo que nunca mais poderá contar a ninguém. Só o que sabemos é que, em sua última sugestão do que seria a verdade, ela sorriu como sorrimos para um bebê quando ele se levanta bem compenetrado depois de desabar.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Mundo interno

Eu tenho um mundo dentro de mim. A minha ingenuidade que o fez. Os sentimentos fraternos de amizade, amor e carinho foram os materiais essenciais para a construção das casas e prédios que o comporão. Em cada uma dessas moradias eu guardava uma pessoa que a mim significava alguma coisa. Nos edifícios mais altos, habitavam as pessoas que eu mais gostava e que eu tinha um enorme apreço. Logo, toda alegria que surgia diante de tal fraternidade, levianamente, fez emergir nesse mundo tudo muito do perfeito até o aprendizado nascer. Inimigo da ingenuidade, com ela, veio a brigar.

Sem perceber, cresci enquanto presenciava edifícios desabando sem entender o porquê de tudo aquilo. Eu não queria que em ruínas as casinhas lá em baixo também desmoronassem. Inevitável. Corroía tudo e eu só sabia questionar mesmo sem ter respostas, só fazia isso. Chorar talvez fosse o preço que devia ser pago por todos os sorrisos dados por ter aquele mundo perfeito dentro de mim. Se assim foi, secou-me a fonte pagando mais do que eu devia.

No meu interior, fragmentos incontáveis. Fluídos delineavam o que havia restado daquele mundo. Fluídos de força? Só sei que me fortaleci quando me vi na situação de reconstruir tudo à espera de novos habitantes. Ingenuidade dando sinal de vida outra vez. A cada construção, mais cautela. Porém, nada adiantou. Efeito dominó. Cada desastre um pior que o outro. Foi quando percebi que o erro não estava nas obras, mas sim em quem nelas habitaram. Fim da ingenuidade e de materiais de construção.
Mundo vazio. Embaixo dos escombros ficaram as lembranças e eu não quero revirar nada para responder. Melhor deixar assim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Otimismo doado.


Eu conheci um otimista na infância. Ele era um pouco mais baixo do que eu, tinha olhos claros e a pele vermelha, falava baixo e nunca mostrava os dentes durante as refeições. Nós crescemos juntos, passando todos os verões, até o princípio da puberdade, viajando para a região dos lagos para aproveitar melhor o sol. Ele me dizia que o otimismo tinha quatro pares de patas e me mostrava cada uma delas na areia, saindo de um cilindro assimétrico que desenhava com o dedo, pois naquela época eu não sabia ainda fazer contas e precisava ver que eram oito com clareza para entender como podia o otimismo subir pelas paredes e tecer em apenas uma noite enormes teias de seda para se pendurar no teto.


Aos treze anos, mais ou menos, ele me disse que não mais me acompanharia nas viagens de fim de ano e, quando perguntei o porquê, apenas me disse que preferia as ruas asfaltadas entre as feitas de pedra. Não soube dele desde então e, no ano seguinte, resolvi criar dentro de um pote de plástico com algodão molhado o meu próprio otimismo.

Meu pequeno otimismo cresceu com um esqueleto rígido envolvendo seu corpo diminuto e se alimentava uma vez por dia de pequenas porções de rotina que eu colocava na beirada do seu algodão. Em pouco tempo, cresceram nele presas curtas e enegrecidas as quais enfiava com alegria nas pequenas bolotinhas de rotina, desenvolvendo o estranho hábito de sugar de uma só vez seu conteúdo mole e gratificante, deixando penduradas no tecido que contornava o plástico carcaças recheadas de um tédio pegajoso que introduzia no lugar e envoltas em fios de desespero que desenrolava da própria saliva.

Meu otimismo, então, tinha quatro pares de patas, três segmentos de corpo e um esqueleto sólido envolvendo o tórax. Vivia nos pequenos paraísos de escuridão do meu quarto e entrava nos sapatos suados e impregnados de boas intenções passadas de prazo que eu costumava colocar para arejar em algum desses cantos aonde o frescor da madrugada fazia a curva durante a noite; entrava nos sapatos e esperava pacientemente para inocular suas toxinas na minha pele vulnerável quando eu chegava para esmagá-lo pela manhã.

Demorou bastante tempo até que eu compreendesse que o otimismo é a ruína da rotina e do convívio diário e percebesse que os otimistas, dentre as suas tantas peculiaridades, jamais andam olhando para o chão e, por isso, enfiam os saltos nas porções de terra entre os calços das ruas de pedra. 

Portanto, antes que me arrancasse o privilégio de andar de cabeça baixa e de contar as vezes que meus pés tocam as linhas da calçada, resolvi que não podia mais criar a criatura selvagem dentro de um quarto/sala (talvez se eu morasse em uma casa com jardim, quem sabe). Deixei meu otimismo em um retiro de artistas, para que não se consuma sozinho com suas próprias expectativas, para que emoldure seus sonhos e os pendure em uma parede amarela de tinta e velhice, para que assista o desengano alheio explodindo em uma constante festa de despedida ao seu redor e não se sinta tão sozinho como na minha gaveta ou no meu sapato, comendo do pouco que restou dentro de mim para alimentá-lo além da realidade.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Bcg

As marcas de vacina nunca passam. Elas sempre voltam quando você olha pros braços nus ou conta pra um amigo que está feliz de novo. Estar feliz nunca é problema, mas aquela cicatriz que foi feita na carne com dor e agulha, volta com os beijos e com os exames dizendo que issoé amor em miniatura.

A peça


Não só hoje, mas desde sempre, o mundo tem sido uma peça incrível, mas muito mal produzida. As maquiagens são ruins, é aparente. Os atores raramente sabem seus diálogos, suas marcações de cena ou como contracenar apropriadamente com os demais. Os diretores estão perdidos, não sabem o que fazer com tanta gente ou como usar os cenários da forma mais apropriada. Os assistentes de palco só fazem correr de um lado pro outro, tantas e tão diversas são as ordens que recebem, e os figurantes só ficam parados no meio do caminho, nunca sabendo se devem fingir que estão conversando tranquilamente ou se na realidade estão no meio de uma cena de ação. A orquestra não consegue se harmonizar, visto que o maestro está constantemente em busca das partituras, e os dançarinos dançam cada um a sua própria dança absurda, rodopiando em torno de seus próprios umbigos.

As cortinas fecham e as cortinas abrem sem motivos aparentes. E até aqueles que decidem ser só os espectadores, que pagam, com a própria cara, pra ver, estão todos um tanto robóticos, insensíveis, e um quê catatônicos com tanta coisa que acontece ao mesmo tempo, e alguns até mesmo envergonhados com a bagunça que ofende da pior forma possível a grandeza e a beleza do roteiro (que, aliás, ninguém sabe ao certo onde foi parar). Alguns tentam rezar pela ordem, gerando um crescente burburinho na platéia, e os que estão tentando dormir para fazer passar o tempo reclamam. Outros estão desesperados para subir no palco, estapear os atores e desempenhar seus papéis no lugar deles, mas simplesmente não podem. Os mais ambiciosos querem ser diretores e querem ser escritores, mas não podem competir com a arrogância e a impassibilidade dos atuais.

Lá fora, também, há um ensaio de caos. As pessoas que chegaram atrasadas e não puderam entrar compram briga com os desistentes, que vão saindo com olheiras fundas. E há os transeuntes, é claro, os que nunca sequer tiveram a intenção de entrar no teatro. Ou porque acham desnecessário ou porque acham caro demais. Esses andam tranquilos, sem motivos nem necessidade de motivos. Simplesmente em paz.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Bomba



Atire a bomba
Mas não esteja lá no momento da queda.
Não há nada pior do que sentir o impacto.



domingo, 29 de janeiro de 2012

Castigo.


Não consigo me livrar de sua morte. Eu tomo banho, e ela continua me rondando. Eu escovo os dentes, e ela está lá, um cabide onde ponho o casaco na entrada e saída das minhas conversas.

Eu faço amor, eu assisto aula, e ela permanece inteira, vigilante. Já cumprimentei sua morte e ela não mudou de posição. Já chorei, já rezei, e ela não vai embora. Decidiu ficar comigo, sua morte, tenho que me acostumar.
Sua morte não me pede nada, nem um prato de comida, não emite um som. Incomoda quem nos olha sem falar. Sou capaz de dar tudo para que ela falasse alguma coisa.

Não, longe de ofender sua morte, sua morte não me suja, não me incomoda; ela me desequilibra. Eu fico desnorteada, como quem tem pouca roupa para o inverno, como quem senta nas mãos para se aquecer. Estou sem saber onde é o meu lugar e não descobri a pergunta a fazer para retomar o esquadro. Sua morte não mudou a cidade, Recife continua como estava, as ladeiras esperando a sombra como uma puta, a luz verde do outono. Sua morte mudou meu jeito de enxergar.
Vontade de me desculpar por estar escrevendo sobre você, não tinha esse direito. Sua morte não me torna importante, nem sublinhará o que passamos juntos. Mas sua morte me transforma repentinamente em seu familiar. A morte tem disso: de aproximar telepaticamente quem se conviveu. É a intimidade que deveríamos ter criado em vida.

O que me assusta (de ternura) em sua morte é que você está nela rindo. Não me lembro de seu rosto tomado de severidade. Você morre e eu me apresso a existir. Sinto-me egoísta, porque sua morte me faz pensar em mim e assim esquecê-lo. Eu me defendo da minha morte em sua morte.

Você não podia morrer. Quanta orfandade em seu espaço. Seus amigos perguntarão muito sobre você. Você será uma premonição na hora triste e uma lembrança na hora alegre. Você não será um amigo ausente, mas uma ausência abrasada, que cuida, que entusiasma, eu lhe garanto. Uma ausência que frequentará seus sonhos com a pontualidade de quem o espera na escola. E, acima de tudo, seus amigos não precisarão inventá-lo. Você fez sua parte no amor.

Com todo afeto, 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Free hugs


Todo presidiário tem dez minutinhos de sol, um recreio para banhar o rosto com a luminosidade da manhã. Já quem é livre talvez passe 24h longe de um pátio, desprovido de um mísero contato com a luz do dia. Talvez não abra a janela, sequer levante as persianas, para espiar o azul do horizonte e criticar a temperatura dos relógios da rua.

Quem é livre age com culpa. Encarna-se na profissão como um condenado, debruçado a atender os múltiplos sinais do celular, laptop, iPad. Sempre encontra um tempo para adiantar uma tarefa, mesmo que seja necessário abdicar do almoço, mas nunca abre frestas para se sentir no mundo. Suas frases mais comuns são que não tem escolha; precisa se sustentar; há muito a fazer.

Se fossemos samambaias, estaríamos mortos. Secos. Murchos. Até abraçar desaprendemos. Ninguém mais abraça com vontade. Odeio abraço falso. Abraço tem que ter pegada, jeito, curva. Aperto suave, que pode virar colo. É pelo abraço que testo o caráter do outro. Não confio em quem logo dá tapinhas nas costas. A rapidez dos toques indica a maldade da criatura. Não sou porta para bater.

Devemos fechar os olhos no abraço, respirar a roupa do abraçado, descobrir o perfume e a demora no banho. Requer cruzamento dos braços e uma demora do rosto no linho. Abraço é para atravessar o nosso corpo. Sou adepto a inventar abraços. Criar abraços. Inaugurar abraços. Realizar um dicionário de abraços. Um idioma de abraços. Abraço é confissão.

Dez minutinhos de sol e de liberdade.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Daqui por diante


Você me diz que tratará de arranjar um jeito de arrancar seu amor por mim. Como parar de fumar ou beber.  “Pare de amar e emagreça dez quilos”. Parece fácil? Já o vejo colocando adesivo no carro. Mostrando fotografias de antes e depois.  Tem medo que eu o descarte, portanto é melhor acabar agora. Não vai arriscar. 

É com facilidade que afirma. Com desembaraço. Assim como trocar o dia cinco pelo seis na folhinha do calendário. Está cansado de explicar. Explicar o que nem entende. Você é capaz de casar para se vingar. Fingir que está feliz. Colocar toda a sua concentração para me convencer que conseguiu. 

Serei deportada de sua memória. Explica que não é pessoal, é uma decisão técnica. Há outras vidas inocentes em jogo. Não é justiça, é desespero, que dá no mesmo. Sofrerá um pouco de contrariedade no início. Como um vício. Após a primeira semana passa. Acredita que passa.  

Você decidiu que não presto para sua vida, que merece alguém melhor. Como quem escolhe ser vegetariano. A partir de hoje, não comerá mais carne. Eu não presto, nunca prestei, mas o amor que você sente não tem nada a ver comigo. Ele não depende de nós para nascer ou morrer. 

Isso só descobrirá depois. Depois de desistir de desistir de desistir.