quarta-feira, 30 de maio de 2012

Piano

Só outro dia aprendi que blue note é a nota triste, associação que eu nunca tinha feito antes. Me contaram que essa nota é uma herança das escalas musicais entoadas pelos africanos em suas canções de trabalho. Assim, numa melodia diatônica tradicional do ocidente, a nota triste soa como uma nota inesperada na linha melódica, uma terça, uma quinta, ou uma sétima mais para baixo. Quando o ouvinte espera um intervalo maior, vem esse intervalo menor e é essa diminuição do tempo entre duas notas que é triste. A tristeza, ou melhor, a tristeza azul, é a diminuição do intervalo esperado.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Exit

Fecho os olhos pra não ter mais que te escutar, seus sussurros são opacos demais, suas palavras perdem a transparência no momento em que começa a colorí-las. Assim tão próximo, seu corpo transforma-se em borboleta, colorido e repugnante, não é a cor que vai te tirar da posição de inseto, nenhum fingimento pode fazer desaparecer as escamas que carrega nas asas. Suas palavras, entretanto, são mariposas, grotescas ao olhar de perto, porém leves, tranquilas de ouvir de longe; não tentam fingir uma beleza que não têm. Me agrada a sua polinização sincera e desengonçada, monocromaticamente correta em uma natureza fútil e espalhafatosa.

Fecho os olhos e você desaparece, junto com a paisagem, junto com tudo o que eu já quis que você fosse; talvez eu valorize demais as palavras em detrimento das imagens, porém, devo confessar, não sei colorir seus parágrafos dentro das linhas e acho também que ninguém te ensinou a falar colorido sem se borrar.

A solução é ouvir em preto e branco.
O caminho mais curto é me cegar pra tua voz, mas não se perca em um conceito de desafio, há muitos anos coleciono rouquidão, isso é tão ridiculamente fácil, é preciso apenas juntar todo o tempo em que se fecha os olhos pra piscar para ficar a maior parte do dia sem enxergar.

domingo, 27 de maio de 2012

Espera

No romance "A fera na selva", de Henry James, John não se dá conta de que o objeto de sua espera infinita esteve a vida toda diante dele próprio. A espera é um tempo narcísico e inflado; ocupa tanto todos os espaços do esperador, que o impede de ver além da espera. O esperador compraz-se tanto em ser sujeito e vítima da espera, que a realização de seu conteúdo pode, para ele, não passar de frustração.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Presença

Por algum tempo (pouco que seja) estar longe de si, ausente de si, sem saber qual é o sentido de se ter o nome que se tem, o tamanho, o peso, o volume. Ser uma presença sem ideias e passar.

domingo, 20 de maio de 2012

Medida

Um silêncio de algo que está sendo não dito, diferente do silêncio de nada estar sendo dito, do silêncio carregado de si mesmo, do silêncio de tudo estar sendo dito. Um é poder, outro é apatia, outro é autonomia, outro é pacto. O silêncio é um alfabeto dificílimo. Não há dicionário nem método para aprendê-lo. Para se comunicar com um silêncio a língua de acesso é o tempo e, com sorte, o olhar. Falar atrapalha. Diante de alguns silêncios é preciso tomar cuidado. Outros não querem cuidado nenhum. Para uma hermenêutica do silêncio, a melhor medida é respirar.

sábado, 19 de maio de 2012

Anticoagulante

Acontece assim: eu corto os seus pulsos, a culpa vai parecer toda sua, corto seguindo o curso da artéria radial, quero fazer uma bagunça. Eu gosto de sangue. Eu gosto do seu sangue. Quero beber, colocar em um balde, derramar pela casa. Rolar no teu sangue, é isso o que eu quero. Mergulhar em piscina de plasma e enxergar através do seu vermelho, enquanto você cai debilmente na cama, quero nadar nas suas veias.

Sonho todas as noites em tirar sua vida com os dentes, usar os caninos para te rasgar em todos os pulsos principais. Por você, eu não beberia nada além de sangue, nada além do teu sangue, nem mesmo água, e estou com tanta sede, cinco litros de você só vão servir para engrossar minha saliva, tirar a minha água enquanto você sangra no colchão, mas não me peça para tirar também minhas máscaras, não quero acelerar a desidratação.

Seu corpo já está morto, inerte, pálido, chupei sua carótida como uma tangerina e continuo te deixando sangrar mesmo depois de passado o prazo de validade. Antes de beber, encho as tripas de heparina para te impedir de coagular dentro de mim, é muito do seu sangue para pouco ácido no meu estômago, a qualquer momento posso ter uma indigestão, mas ainda assim quero sua estirpe bem viva no meu esôfago e intestino, meu sangue e teu sangue com apenas uma camada de músculo liso para separar, quero me banhar nas suas feridas abertas para que elas não tenham tempo de cicatrizar.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Perda

Achei que tinha perdido as chaves de casa, mas não perdi. Achei que tinha perdido os óculos, mas estão comigo. Mas perdi um livro, um caderno, um colar, uma canga, uma ideia, uma parte da memória e, ontem, uma vontade que anteontem eu sentia de abraçar alguém.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Fechadura

Uma fechadura tem vários buracos. Uma pessoa tem todas as chaves para abrir esta grande fechadura. Mas ela não consegue enfiar todas as chaves nos buracos correspondentes de uma só vez. Ela tenta então colocar uma de cada vez. Mas quando ela acerta uma, a outra se trava, porque a fechadura só aceita que todas as chaves sejam colocadas simultaneamente. A pessoa estuda, durante muito tempo, as coincidências entre os dentes das chaves e os orifícios de cada entrada. Mas não consegue segurar tantas chaves nas posições corretas de uma só vez. Cria então um mecanismo de suspensão das chaves nas posições certas, insere-as e coloca-as todas em suas entradas correspondentes ao mesmo tempo. A porta se abre, mas já se passou muito tempo para que a função cabível fosse cumprida.

sábado, 5 de maio de 2012

Quando o hard rock sabia amadurecer

     Quando se fala em Led Zeppelin, o que vem a cabeça de muita gente é Starway to Heaven. Música batida, e muito. Mas é inegável de que se trata de uma obra-prima e umas das mais belas canções da música universal. Porém, não irei comentar e muito menos analisá-la. Como toda banda decente deste infinito universo de música boa, eles cresceram. O disco House of the Holy, de 1973, é o amadurecimento da banda. Particularmente é o disco que mais gosto, porque é uma enciclopédia musical dos anos 1970. Não que tenha o melhor da banda neste disco, mas ele não é nem pesado, nem leve, nem agressivo, nem amoroso. É um álbum para ouvir em qualquer situação.
      Led Zeppelin foi além do Hard Rock. O disco começa com um verdadeiro soco na cara. Uma mistura ousada do rock pesado com progressivo. Jimmy Page está em sua melhor fase. Suas trilhões de guitarras se tornam uma única melodia. A bateria de John Bonham e o baixo de John Paul Jones mostram autoridade, como se eles fossem o dono de toda essa atmosfera. E até são. Já que citei Starway to Heaven, The Rain Song  também entraria fácil na lista das músicas mais belas do homem. A voz melancólica de Robert Plant vai crescendo e se torna parte única de uma música que parecia até então, sem grandes pretensões. Assim como em Over the Hills and Far Way, parece ser uma balada acústica, e de repente tudo cresce.
      O amadurecimento deles fica muito evidente devida a diversidade de estilos que há no disco. O funk The Crunge é um bom exemplo. E não só pela levada, mas pela harmonia, dinâmica e arranjos. Além de citar, por justa causa, frases de James Brown. E por falar na diversidade, eles provam que boa música pode sim e deve ser simples. Dancing Days é uma gostosa canção. Daquelas que qualquer versão que ouvir vai ficar boa. Como se estivesse no balcão de um bar e um cara com violão começasse a tocá-la. E por falar em viagens entre estilos, nada como citar o único hit deste disco: D’yer Mak’er. Um reggae. E ninguém pode exigir mais do que ela é. Porque é maravilhoso ver uma banda inglesa querendo brincar em um estilo do qual não fazia parte da cultura, até então. E brincaram muito bem. No Quarter mistura progressivo, rock e psicodelismo. Led Zeppelin mostrando que o rock não estava envelhecendo.
      O disco fecha com The Ocean. Um ótimo riff de guitarra e melodia bem roqueira, para ser sincera. Ela tem uma atmosfera “ao vivo”. Ou seja, parece ser gravada com todos os instrumentos ao mesmo tempo. Uma bela despedida para uma obra-prima da música. E como despedida, ao final desta canção, entra uma melodia festiva. Lembra muito os melhores momentos dos Beatles. Como se fosse um “boa noite” de um show que valeu a pena ir. De um disco que vale a pena ouvir.
      O único fato lamentável desta bela época do rock, é que adolescentes que vivenciaram discos como o House of the Holy não souberam evoluir. E já crescidos, nos anos 1980, tocavam e se vestiam melhor que sua mãe e irmã. Aquela geração que cresceu ouvindo Led Zeppelin e outras influências do Hard Rock, não aprendeu a lição de casa e preferiu brincar de bonecas.