quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O mundo não é um bufê de festinha infantil

Nesta altura do campeonato já dá para dizer que todos concordam com a importância de deixar um planeta melhor para os nossos filhos. E que, exatamente por isso, a sustentabilidade é uma questão importante dos nossos tempos. O fato de termos atingido esse consenso, porém, não é motivo para a humanidade bater no peito e acreditar que deu um passo à frente. Dar o mundo de presente aos filhos? Vá a uma loja de brinquedos lotada às vésperas do Dia das Crianças ou a uma festinha de aniversário em bufê infantil, desses que têm floresta com tirolesa, campo de futebol e montanha-russa interna, e você descobrirá que os pais estão dispostos a dar muito mais para suas crias atualmente.

O problema de deixar o mundo melhor para os seus filhos é que, como tantos milionários descobrem ao entregar o patrimônio de presente aos herdeiros, isso não garante que também eles serão capazes de repassar a fortuna para a geração seguinte. E, do jeito que andam as coisas, com esta geração de crianças que se entope de brigadeiro nas festinhas, sem nem mesmo respeitar o silencioso pacto de espera até o momento do Parabéns a Você, é difícil de acreditar que o plano dê certo. Quanto mais vou a aniversários, menos confiante eu fico na possibilidade de meus netos receberem dos pais deles um planeta razoável.

O que me leva a creditar que está na hora de inventar um pouco o consenso - a conclusão não é minha, aliás, já ouvi um monte de gente boa defendendo a mesma coisa. Papel e caneta na mão porque aqui vai a nova receita: a missão que cabe a você, todos os dias, é lutar por filhos melhores. O que de certa forma até facilita as coisas: não se trata de entregar tudo de bom no mundo para eles, mas apenas de fazer com que eles entreguem ao mundo o melhor em tudo.

Isso não significa formar uma geração de monges altruístas. Pelo contrário, eles têm incontáveis opções de caminhos para produzir coisas boas. Mas precisam saber que algumas regras são imutáveis. As principais: honestidade não tem meio-termo; somos livres para fazer escolhas, mas não para decidir o preço a pagar por elas; você é o principal responsável por suas conquistas e fracassos; os brigadeiros não são infinitos e você está enganado se acha que tem mais direito a eles do que seu coleguinha. Saber que o esforço é o único requisito mínimo ajuda. Agora junte tudo e você verá que alguém por aí claramente se enganou ao formular a famosa ideia do mundo melhor para as criancinhas. Deixar tudo pronto para elas desfrutarem é a maneira mais segura de garantir o fracasso da missão. O verdadeiro objetivo, portanto, não é entregar a chave de um mundo lindão de presente, mas a responsabilidade de cuidar dele como herança.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Receita pré-ano novo


Logo para começar, a melhor coisa a fazer é varrer toda essa raiva da frente.

A raiva do semelhante, do distinto, do consorte, de nós mesmos. A raiva dos mais queridos, dos desafetos, dos inimigos, dos cretinos, dos boçais, dos corrompidos, dos coitados. Do destino. Do passado. Do presente. Do ausente. Da falta de sorte, da falta de tempo, da falta de estímulo, da falta de grana. Do desgraçado do chefe, do empregado, do salário, da injustiça. Do revés, do obstáculo. Da inércia. Da ausência de horizontes. A raiva do amor. Da falta do amor. Do desgosto. A raiva do mundo inteiro. E ainda a raiva da raiva, coitada, que não tem culpa de nada, só pratica seu ofício, é apenas sentimento. É bom espanar com vigor a raiva que pulsa, sobe, explode e vinga. Então, dá-se uma varredura geral naquelas guardadas, cultivadas, conservadas ou escondidas embaixo de algum tapete.

Dito que a raiva cega, assim que ela é afastada pode-se então enxergar mais fundo.

É hora de vasculhar as mágoas.

Certamente se encontrarão antiguidades. As mágoas de infância, mesmo as motivadas por tolices, são as mais enraizadas. Arranca-se tudo. Em seguida aparecem as apaixonadas, dos tempos de juventude: invejas, ciúmes, traições, feridas mal cicatrizadas, tudo muito exagerado. Estas têm uma vantagem: muitas são vindas de êxtases, big-bangs adolescentes, foram devidamente expelidas desde quando apareceram, portanto já se desagregaram da alma. O que sobrou é fragmento. Pouco. Resto. Mas as mágoas mais recentes, as que permanecem alertas e continuam se alastrando, são veneno. Contaminam. Por isso é tão necessário que sejam remexidas com toda cautela possível. Depois de identificadas, todas as mágoas, sem exceção, devem ser exterminadas. Recomenda-se muito fogo para reduzir a cinzas tudo que indevidamente ficou lá atrás, encarcerado.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Hora certa


Não se pode se separar em dezembro. Deveria ser proibido por lei. Constar na Constituição.  Tem o Natal, o Ano-Novo e as crianças. Há as festas intermináveis em família.  Quem será idiota de pedir o divórcio em dezembro, logo quando encontrará todos os parentes?  Contou com o ano inteiro para a ruptura e escolheu a pior data. Dará satisfações a cada vez que se servir na mesa?  Que mesa? Não será chamado para festa alguma porque será sinônimo de agouro e tristeza. Um gambá espiritual. Um guaxinim de estrada. Um fede-fede dos pinheiros.  Não será convidado, é agora o principal motivo de fofoca. O pêssego do pernil. 

Entre sua cara de choro e a fofoca, os familiares ficarão com a fofoca. Falar mal de você pelas costas é agradável, mais atraente do que acompanhar a missa do Vaticano na tevê. A maldade não termina, não sofre oposição. Seu sofrimento não combinará com as ruas lotadas, a algazarra das piscinas, o papai-noel das lojas chantageando sua infância.  É um fracassado, desorientado, sem casa para voltar, regressando ao seu antigo domicílio em horário de expediente para brincar com as crianças e dizer que tudo bem, a confusão vai passar, nada mudou. 

Desperdiçou o grave e inadiável instante de aproveitar o 13º salário, pensar nos presentes e escondê-los no armário, arrumar a ceia, participar de amigo-secreto, mandar postais, comprar roupas. As coisas boas e deliciosas da intimidade.  Não é o momento de brigar, discutir e encontrar um culpado dentro de você.  Enterre seu amor e confesse em março. Mas não consegue mentir.  Por que ao menos não esperou janeiro e fevereiro, onde a maioria dos conhecidos está na praia? Não, tem razão, daí estragaria as férias. 

Mas gente normal não incomoda, não conversa sério, não se machuca no período.  Desista, o mês é curto, acaba em 24 de dezembro. Não há como comprar apartamento, mobiliar o espaço, arranjar um fiador. Muito menos o eletricista terá disponibilidade, o mesmo ouvirá do marceneiro para desmontar e montar as estantes. Não vislumbrará os homens do frete nas praças.  Pretende desabafar e procurar tratamento. Pretende explicar que a separação é parto natural, que não é uma cesárea, para escolher o signo da criança e a data do nascimento. Esqueça também, acha que encontrará algum psicólogo com agenda?  Estarão em festa com a família, onde deveria estar, seu idiota!, se não inventasse de destruir o Natal dos outros. 

Ninguém deseja ser infeliz em dezembro.  Seu insensível, como pode arrancar da tomada as luzinhas da árvore?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sem saber


Eu disse que não sabia o que fazer. Sentei na escada de costas para o vento, deixando a franja cobrir meus olhos. Eu realmente não sabia o que fazer. Eu queria falar, mas não tinha mais o que dizer - ou tinha medo.


Olhei para o chão, cheio de terra, cheio de marcas de pés. Fiquei olhando. Olhei até que nada mais consegui ver. Tentei levantar, mas tinha esquecido como, então continuei do jeito que estava, com os cabelos na cara sem enxergar. Continuei do jeito que estava até que ele se irritou comigo. Irritou-se com a minha preguiça, com a minha falta de vontade.
Ele me mandou sair dali, mas eu não queria, eu não sabia para onde ir. Ele continuou falando, mas eu não conseguia mais ouvir - ou eu não queria.
Eu vi a luz da rua acender. Nem vi quando o céu apagou. Ele deve ter visto, mas eu não vi.


A escada é de todo mundo, não sei porque ele me manda sair. Não tenho mais paciência para perguntar - ou talvez me falte a voz - e ele também não se incomoda em me explicar. Eu continuo sem saber, e continuo ali.
O frio começa a me incomodar, ele está de casaco e se recusa a me emprestar, talvez eu devesse mesmo sair dali. Ele acha que saí porque ele mandou, tentei dizer que foi o frio, mas ele não acreditou - ou não me ouviu.
Saí. Logo depois quis voltar, mas não me lembrava como e ele não quis me ensinar. E foi embora. Foi embora sem me ajudar.


Fiquei sozinha, agora de frente para o vento, com os cabelos voando e as bochechas rosadas pelo frio. Queria que alguém estivesse ali, mas não sabia quem chamar - ou esqueci. Então fiquei ali, esperando alguém passar. E continuo esperando. Estou cansada de esperar.

sábado, 17 de dezembro de 2011

A grande merda


Cansada. Muito cansada.

Mas entendendo melhor o mundo a sua volta.

Talvez resignada.

Um jeito tranquilo e covarde de não se envolver com o resto de toda a merda.

Um jeito assim

meio perturbado

de entender

ainda um pouco revoltada

de que não se pode ser Deus.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Be not afraid of fear


Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase. É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi. Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou. Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto. A resposta eu sei de cór, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos “Bom dia”, quase que sussurrados. Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz. A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza. O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém,preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer. Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

No enquanto



O  amor é um destes lugares da imaginação em que recriamos a ilusão de não estarmos sós. Não falo da relação concreta que envolve o amor, com suas grandes maravilhas e seus pequenos desastres (ou, às vezes, pequenas maravilhas e grandes desastres). Falo do sentimento que nunca pode ser inteiramente expressado porque é de uma riqueza inacessível para o outro. O amor é um daqueles lugares do indizível, porque não há palavra, imagem ou gesto suficientemente preciso para representá-lo. Não há vocabulário ou acervo capaz de fazer o outro compreender o quanto de amor há ali. É por isso que repetimos tanto e de tantos modos diversos, tentando cercar o outro de uma soma constante do nosso amor.

No entanto, por mais que exista um outro a quem amar, e que ele seja merecedor do nosso cuidado e do nosso tempo, a maior façanha do amor é esta ondulação interna que ele provoca. Esta sensação de estar pleno de sentimentos fortes, intensos, reais. A sensação de estar vivendo. Na expressão do amor, podemos ser mais ou menos generosos, mais ou menos dedicados, mais ou menos criativos. Não importa. O que importa é esta qualidade que nos conferimos ao amar alguém. Quando digo “você é especial” – por palavras, gestos ou olhares silenciosos -, estou dizendo “você é especial para mim, sou eu que te faço assim”.

As relações raramente acabam junto com o amor que sentimos. Acabam antes, acabam depois.  Quando uma relação acaba, sofremos porque temos que enfrentar um processo longo de reacomodação. Mas o que nos deixa perplexos, de fato, é quando percebemos que o amor que sentíamos acabou. Quando olhamos uma pessoa e buscamos acessar aqueles velhos arquivos que nos faziam vivos pelo simples fato de estarmos os dois ali. Não reconhecemos mais os conteúdos desses arquivos, eles agora parecem inadequados. Não acompanhamos mais o andar singular daquela pessoa pelo corredor, ou entre as mesas de um restaurante, porque já não importa muito vê-la caminhar e importa menos ainda saber para quem ela está olhando. É neste momento que percebemos que algo do nosso interior já não está mais lá, onde costumava ficar.

Neste momento, de uma estranha epifania, você finalmente sabe que o único mundo em que você pode navegar é o de suas emoções. Você pode se guiar por metas, objetivos e planos. Mas são as emoções que te fazem vivo. Ao final o amor é esta capacidade interna de se sentir único. Você quer ser vital, necessário, quer fazer a diferença (para alguém). O que você ama, em suma, é aquilo no qual você se torna enquanto ama.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Because the world is round it turns me on

Já devíamos ter nos acostumado com essa coisa de mundos acabando todos os dias.
Só aqui, nessas minhas ideias, se vão uns 12 por semana.
A maioria vai de morte morrida. Os mundos que são tantos e tão altos morrem porque a gente é meio covarde pra coisas assim, que giram a cabeça. Aí a atmosfera deles fica meio podre e eles adoecem e morrem.

Outros mundos acabam por esquecimentos muitos – ou por esquecimentos poucos. Porque pra esquecer é preciso sempre lembrar duas vezes. Aí eles se consomem num loop contínuo de lembrar-esquecer e vão perdendo pedaços e pedaços até sumir.

E tem também aqueles mundos que a gente não quer que acabe de jeito nenhum. E aí a gente cuida. E aí eles ficam grandes. E aí a gente fica giro-orbitando por eles e plantando histórias e arquitetando mapas. Quando a gente vê, já tem até habitante.

Mas acontece que mundos acabam todos dias e ninguém se acostuma com isso nunca.

Só que aí, um tempo depois, passa aquele buraco negro de fim de mundo. E se sente no espirro a poeirinha cósmica juntando-amontoada e se ouve por aí o canto de acasalamento das moléculas, que vão encaixando seus bracinhos atômicos aleatoriamente de novo e de novo.

E embora nenhum mundo nasça de novo – porque aleatoriamente nunca é igual – a gente sorri de certeza.

A de que aquele mundo, tendo existido, foi a coisa mais linda.
De todos os outros mundos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Motivos

Eu não costumava contar para as pessoas. Porque demorou muito até eu entender o que era depressão e isso tudo. Então eu não costumava contar para as pessoas porque nem eu sabia. A minha vida toda, até a hora em que eu ouvi minha analista dizendo "você tem depressão, você tem que aprender a viver assim", eu achava que era dramática.

Mas, né? Para nenhuma adolescente, por mais dramática que seja, é normal chorar no chão da cozinha porque não tem forças pra levantar e chegar até o quarto.

Daí eu só entendi há alguns anos e nunca soube direito como agir. Eu devo falar de cara, quando conheço alguém, pra preparar a pessoa? "Oi, eu sou estudante e também sou depressiva, e você?" Espero um dia ruim chegar pra explicar que, olha, não é por nada, nem é falta de educação, eu não tô a fim de conversar porque tô mais a fim de chorar? Nunca sei como tocar no assunto. Ou mesmo se devo tocar ou não. Porque não é desculpa, eu não quero usar como desculpa. Eu só quero explicar mesmo.

Mas essa hora sempre chega. E não importa o que eu tenha decidido fazer. Se eu não falei nada. Se eu falei em forma de piadinha. Se eu falei sério. Se eu falei como quem não quer nada. A hora de contar por que eu não retornei a ligação, por que eu demorei tanto pra responder o e-mail, por que eu tô com essa cara e não dei um sorriso. Essa hora sempre chega.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

As melhores coisas do mundo

As melhores coisas do mundo, são, como você já pode imaginar, relativas. Algumas são realmente incontestáveis, mas pra que você entenda bem o conceito, vamos nos concentrar em detalhes bem característicos. A primeira lição é: não é exagero. Dito isso, vamos partir para exemplos claros e simples.

O palito de fósforo quente que eu gosto de apagar na gotinha de água da pia pra fazer tsssssssssssssssssss. É uma. E você vai entender bem, porque, por acaso, também gosta.

Quando eu faço banana amassada, coloco farinha láctea e depois mel. Deixo o mel escorrer da colher em um fio bem fino, e aí vou passando o fio pelo farinha e ela magicamente se enrola no mel. É sensacional.

Cinco gotas de própolis no leite quente com achocolatado – o sentido da vida muda nesse instante.

Conseguir acender o aquecedor de 1815 de primeira, uma vitória que eu nunca me canso de comemorar.

Essa não sei se vai dar pra entender, mas não errar nenhuma vez na hora de fazer o “rabinho do delineador” é praticamente ganhar na loteria da beleza.

Abrir o e-mail exatamente na hora em que ele chega. É meio que uma sensação de ter ganhado muito tempo na vida. Confuso e bem coisa de “addicted”. Mas quem sabe te ajude a entender.

Comer cereais bem rapidinho pra não dar tempo de o leite amolecer os flocos de milho, porque aí não fica mais crocante.

Encerrado os exemplos, eu te comunico que você pode se considerar muito privilegiado por eu te dizer que é, também, o melhor do mundo. Não por minha causa, é claro. Mas na minha opinião, pra alguém estar na mesma categoria do barulhinho do fósforo na água, da farinha láctea enrolando no mel e até do e-mail lido quase em tempo real, você não é, definitivamente, um exagero. “Você me entende?”

domingo, 11 de dezembro de 2011

Sem complicações

Há conversas que nunca terminam e dúvidas que jamais desaparecem. Sobre a melhor maneira de iniciar uma relação, por exemplo. Muita gente acredita que aquilo que se ganha com facilidade se perde do mesmo jeito. Acham que as relações que exigem esforço têm mais valor. Mulheres difíceis de conquistar, homens difíceis de manter, namoros que dão trabalho - esses tendem a ser mais importantes e duradouros. Mas será verdade?

Eu suspeito que não.

Acho que somos ensinados a subestimar quem gosta de nós. Se o garoto na mesa ao lado sorri em nossa direção, começamos a reparar nos seus defeitos. Se a pessoa fosse realmente bacana não me daria bola assim de graça. Se ele não resiste aos meus escassos encantos é uma homem fácil – e homens fáceis não valem nada, certo? O nome disso, damas e cavalheiros, é baixa auto-estima: não entro em clube que me queira como sócia. É engraçado, mas dói.

Também somos educados para o sacrifício. Aquilo que ganhamos sem suor não tem valor. Somos uma sociedade de lutadores, não somos? Temos de nos esforçar para obter recompensas. As coisas que realmente valem a pena são obtidas à duras penas. E por aí vai. De tanto ouvir essa conversa - na escola, no esporte, no escritório - levamos seus pressupostos para a vida afetiva. Acabamos acreditando que também no terreno do afeto deveríamos ser capazes de lutar, sofrer e triunfar. Precisamos de conquistas épicas para contar no jantar de domingo. Se for fácil demais, não vale. Amor assim não tem graça, diz um amigo meu. Será mesmo?

Minha experiência sugere o contrário.

Toda vez que eu insisti com quem não estava interessado deu errado. Toda vez que tentei escalar o muro da indiferença foi inútil. Ou descobri que do outro lado não havia nada. Na minha experiência, amor é um território em que coragem e a iniciativa são premiadas, mas empenho, persistência e determinação nunca trouxeram resultado.

Relato essa experiência para discutir uma questão que me parece da maior gravidade: o quanto deveríamos insistir em obter a atenção de uma pessoa que não parece retribuir os nossos sentimentos?

Quem está emocionalmente disponível lida com esse tipo de dilema o tempo todo. Você conhece a figura, acha bacana, liga uns dias depois e ela não atende e nem liga de volta. O que fazer? Você sai com a pessoa, acha ela o máximo, tenta um segundo encontro e ela reluta em marcar a data. Como proceder a partir daí? Você começou uma relação, está se apaixonando, mas a outra parte, um belo dia, deixa de retornar seus telefonemas. O que se faz? Você está apaixonado ou apaixonada, levou um pé na bunda e mal consegue respirar. É o caso de tentar reconquistar ou seria melhor proteger-se e ajudar o sentimento a morrer?

Todas essas situações conduzem à mesma escolha: insistir ou desistir?

Quem acha que o amor é um campo de batalha geralmente opta pela insistência. Quem acha que ele é uma ocorrência espontânea tende a escolher a desistência (embora isso pareça feio). Na prática, como não temos 100% de certeza sobre as coisas, e como não nos controlamos 100%, oscilamos entre uma e outra posição, ao sabor das circunstâncias e do tamanho do envolvimento. Mas a maioria de nós, mesmo de forma inconsciente, traça um limite para o quanto se empenhar (ou rastejar) num caso desses. Quem não tem limites sofre além da conta – e frequentemente faz papel de bobo, com resultados pífios.

Uma das minhas teorias favoritas é que mesmo que a pessoa ceda a um assédio longo e custoso a relação estará envenenada. Pela simples razão de que ninguém é esnobado por muito tempo ou de forma muito ostensiva sem desenvolver ressentimentos. E ressentimentos não se dissipam. Eles ficam e cobram um preço. Cedo ou tarde a conta chega. E o tipo de personalidade que insiste demais numa conquista pode estar movida por motivos errados: o interesse é pela pessoa ou pela dificuldade? É um caso de amor ou de amor próprio?

Ser amado de graça, por outro lado, não tem preço. É a homenagem mais bacana que uma pessoa pode nos fazer. Você está ali, na vida (no trabalho, na balada, nas férias, no churrasco, na casa do amigo) e a pessoa simplesmente gosta de você. Ou você se aproxima com uma conversa fiada e ela recebe esse gesto de braços abertos. O que pode ser melhor do que isso? O que pode ser melhor do que ser gostado por aquilo que se é – sem truques, sem jogos de sedução, sem premeditações? Neste momento eu não consigo me lembrar de nada.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Sinestesia

Músicas que ficam com cheiro de gente. Acordes que parecem envolvidos em uma nuvem de perfume conhecido, aquele perfume que um dia já ficou grudado no seu travesseiro. Talvez nem seja perfume, talvez seja o cheiro da pele, isso, o cheiro da pele que se acostumou com as fronhas e lençóis e, por dias, semanas, talvez meses, ficou ali. O cheiro que ficou ali até que você tivesse coragem de trocar a roupa de cama. Trocar a roupa de cama é o momento em que você se prepara para se libertar daquele cheiro, talvez nunca mais senti-lo novamente. Você não espera que ele vá estar em suas músicas também. Não espera ouvir um cheiro, sentir uma música pelo olfato, quase tateando as cifras através de lembranças.

Ensaboar não adianta, o cheiro não está em você, ele faz parte de você. Digo isso com a pele esfolada. Achei realmente que estava em mim. Quis deletar as músicas. Essas músicas insuportavelmente cheirando a gente. Gente mofada, guardada, amassada. Ouço o cheiro como se o quisesse de volta na gola do meu pijama. Nem uso mais pijama. Parece, na verdade, que o quero em todas as minhas roupas. Quero mesmo é arrancar um pedaço da música. Rasgá-la como um vestido velho e guardar no bolso. Guardar no bolso e nunca colocar o pedaço de pano com cheiro de pele para lavar. Já lavei uma vez. Não posso correr o risco de perder seu perfume na água corrente de novo. Mesmo que ele esteja apenas em forma de música, mesmo que ele nem exista mais, mesmo que você esteja usando outro perfume agora, que seu cheiro esteja diferente, não me importa.

Me contento com a melodia da voz de um cantor qualquer, me contento com a cadência quebrada enquanto não posso ter aquele cheiro velho nas minhas roupas novas, me contento em ouvir palavras que já decorei faz tempo com cheiro que só agora percebi que estava ali, ouvir palavras cantadas em voz rouca com cheiro de você.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Doze dezembros

Chega dezembro e as festas saltam de todo canto. Tem festa de fim de ano da firma. Amigo oculto da turma da faculdade. A ceia com a família. O jantar beneficente. Os convites chegam em atacado. Provavelmente muito mais do que se estivéssemos, por exemplo, em maio. A impressão que tenho é a de que apenas em dezembro - quando existe a expectativa do fim e também do recomeço - é que temos consciência da finitude da vida. Aquela sensação de "já é natal de novo?" nos cutuca e nos faz cair na real sobre como o tempo está escapando pelas nossas mãos. Muito provavelmente não é por isso, mas acho que é um bom motivo para justificar a grande farra que vira dezembro. Outro dia alguém comentou no Twitter que a impressão que se tem é a de que o que vai acabar não é o ano, mas, sim, o mundo. E é bem isso mesmo. Gastamos o que não podemos. Anuciamos para aqueles que amamos o quanto eles nos são caros. Fazemos festas todos os dias. Mandamos toda e qualquer dieta para as cucuias. Afinal de contas, é tempo de aproveitar. Por que? Porque o ano vai acabar, oras! Mas logo vem outro ano, e, sabe-se lá porquê, entramos no modo monotonia outra vez. Economizando, sabe-se lá porquê. Camuflando nossos sentimentos, sabe-se lá porquê. Ficando em casa, sabe-se lá porquê. Deixando de apreciar comidas, engordativas sim, mas antes de tudo maravilhosas, sabe-se lá porquê. Enfim, sobrevivemos onze meses para viver em dezembro. A sexta-feira dos meses. Sabe o que eu quero para 2012? Doze dezembros e nada mais.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Sur-pre-saaa!!!

Shhhh. Faz silêncio aí pra ele não escutar. Nem respire, porque senão ele pode ouvir e a surpresa vai pra cucuia.

Hoje é aniversário de alguém que amo tanto, tanto, tanto, que nem cabe tanto tanto no texto. Se eu tivesse que escrever sobre uma amizade perfeita, não conseguiria descrever tão bem o que tenho com ele. Ou sei lá, vai ver que tem mesmo isso de outra vida e, antes da cegonha me trazer de novo pra esse mundo, eu virei pra algum anjo do setor de relacionamentos e disse: só reencarno sob essas condições. E lá estava ele nas primeiras condições. Junto com não ter celulite. Mas essa não foi atendida.
Somos tão amigos que já nem sei se o nome disso é só amizade. Parece até uma definição pequena perto de tudo que sinto por ele. Nos escolhemos por livre e espontânea vontade para dividir tudo que acontece em nossas vidas. Até que tentamos manter uns segredos, mas as revelações são fatais. E geralmente, engraçadíssimas. Temos nossos momentos de privacidade em que, naturalmente, nos afastamos. Seja por trabalho ou até por falta de assunto, porque às vezes acontece mesmo. Mas nada que uma noite regada a energéticos não resolva. Aí tome planos, piadas, conselhos e risadas. Momentos tristes também acontecem, claro. E não há nada que um não tente fazer para agradar o outro nessas horas.

Shhhhhh. Assim ele vai ouvir. Ele ainda não leu isso, nem sabe que estou colocando aqui. Nem é dia de postar. Leiam baixo pra ele não desconfiar.

Ele nem é desconfiado assim. Mas tem uma intuição pavorosa. Parece minha mãe, sempre acerta o que eu tô aprontando. De repente é mesmo intuição de mãe, como ele é. Uma supermãe, masculinizada. Quando ele se questiona sobre isso, fico pensando da onde tirou essa ideia. Na verdade, ele é muito melhor na arte da surpresa do que eu. Já provou diversas vezes sua capacidade pra isso. E o mais incrível, ele não se mostra decepcionado por eu não conseguir chegar a seus pés quando o assunto é esse. Esse é um dos motivos que tenho para amá-lo tanto do jeito que amo. Com ele não sinto ciúmes (mentira), não me sinto traída, esquecida, deixada de lado, diminuída, enganada ou qualquer coisa que relacionamentos costumam provocar quando começam a descambar pro lado negro.
Pelo contrário. Tê-lo do meu lado é uma grande felicidade. E posso comprovar isso todos os dias, nas mais diferentes situações. Aprendo um tanto com ele, que acho que ele nunca vai ter ideia. Ele é lindo, engraçado, carinhoso, inteligente. E ele sabe disso e sabe se aproveitar de um jeito muito tranquilo e leve. É a tal desenvoltura que tem como ninguém. É a pessoa perfeita para organizar festas com verba reduzida. E com muita verba também. Sabe criar piadas infames que me fazem chorar de rir. É imbatível quando se trata de dedicação para dar presentes. Escolhe com tanto cuidado que fico com vergonha de ter dado tanto trabalho. De você ganhei declarações mais do que verdadeiras de muito amor. E que devem ter custado muito, já que tempo é dinheiro.

Fico muito feliz de saber que foi com ele que fiz minha primeira viagem nacional, mesmo sendo sem sair de casa. Fico orgulhosa de ver tudo que ele faz para se tornar uma pessoa melhor (mesmo sabendo que não há necessidade). Acho lindo como ele dá atenção a tanta gente, como não desmerece ninguém, como se importa com todo mundo que ele gosta. Só não gosto quando ele sofre e fica triste. Fico com muita raiva. Vê-lo chorar corta o coração. E a faca é cega, provavelmente. Porque dói um tanto assim.
Ele merece tudo que ama o tempo todo. Merece que pessoas se joguem no caminho pra tampar poças de lama. Merece Angelina's Jolie's abanando ele com folhas de palmeiras. Merece que escutem e considerem tudo que ele diz. Merece a confiança e o respeito de todos. Mais que isso, o reconhecimento. Meu maior medo é decepcioná-lo. Não suportaria isso nunca. Por isso tentei fazer essa surpresinha.

Pronto. Agora vocês contem até 10. Mas bem baixinho. E assim que ele acessar essa página, respirem fundo e depois gritem com todo ar que tiverem no pulmão “ Feliz aniversário, Flávinho!”.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Mapa do tesouro perdido

E daí minha mãe me disse que eu não posso mais fugir. Da realidade, do espelho, das pessoas, da varanda. Tentei explicar que é só o que eu sei fazer, tentei tricotar uma boa desculpa para me justificar, para me aquecer, para enrolá-la. Mas ela conhece minha pobreza de argumentos, minha falta de traquejo, minha vontade de enfiar a cabeça embaixo da terra e esperar o dia terminar - ou os dias - e não me deixa falar, não me deixa sequer abrir a boca sem me alfinetar, sem martelar meu dedo mindinho com o passado.

Meu passado de camisetas suadas e mãos geladas por baixo da mesa, de passeios pela praia e conversas abafadas por música alta, de contas de celular que vou pagar até me aposentar. Histórias transbordando de "quases". Quase não fugi. Mas fugi. Meus dedos indicadores são calejados de ansiedade, de impaciência. Minha mão inteira é áspera de uma vida me esfregando em fronhas, arrastando a cama de um lado para o outro tentando fugir da insônia. Fugir me deixou áspera, eu acho. "Posso parar a qualquer momento" e lá estou eu fugindo de novo. Da análise, do telefone, do reencontro de colégio, do amor, do merthiolate que arde, de mim.

Deixo que as pessoas erradas abram meu coração. Até olhei no livro do plano de saúde, mas quando cheguei pra cirurgia faltava o anestesista. E eu fugi quando senti o primeiro talho do bisturi. Confundiram morfina com soro fisiológico e me cortaram mesmo assim. Chego em casa sangrando e mostro o corte que trago no peito, bem limpo, bem fácil de costurar, mas minha mãe pega a linha preta - a da minha cor acabou - e costura um grande mapa em minha pele, o mapa de onde eu não devo mais ir? Ou o mapa para onde devo fugir? Não sei, fechei os olhos nessa hora, nem quis saber o significado. Só sei que transformo amor em passado, como quem coloca caldo demais no macarrão e o transforma em sopa.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Farelos

E nesses tempos tão estranhos, esmigalho os biscoitos com as mãos e os jogo no copo. Assisto enquanto eles se desmancham e vão tornando o leite em volta cada vez menos branco. Como de colher. Colher de café para fazer durar mais. Sempre quero que dure mais. Aproveito a liberdade da solidão para não me importar em pegar um guardanapo quando sinto o leite escorrendo pelo canto dos lábios. Limpo com as costas das mãos e seco na fronha do travesseiro. O travesseiro no qual encosto a cabeça para dormir.

Você nunca pode comer na rua do mesmo jeito que come em casa. Você não deveria compartilhar esses hábitos tão particulares também, mas às vezes você conhece algumas pessoas que parecem entender, e então você fala. Você conta suas nojeiras mais secretas, sem imaginar que, aqueles com olhos tão compreensivos, nunca comeram uma coxinha de frango sem usar talheres. Pessoas que fingem te entender, mas que não conseguem disfarçar a expressão de asco ao te ouvir. Na rua você tem que estar com o cabelo penteado, com as roupas sem manchas, com os cotovelos longe da mesa e os garfos e facas alinhados em volta do prato. Na rua você tem que ser alguém bem educado, bem resolvido, bem vestido.

Por isso, não quero te encontrar em um restaurante. A rua tira um pouco do que cada um é de verdade. Eu já separei uma enorme pilha de filmes para assistirmos, mas você vai ter que parar de me oferecer seus lenços para eu limpar meu queixo sujo de molho de tomate. Estamos em casa, de pijamas listrados, com golas duras de pasta de dente. Mangas compridas limpas não têm a mesma graça. Usar talheres em casa não sacia a fome. Você dizer que me entende pelas músicas que mostrei é hipocrisia. Você não vai me entender até que seja obrigado a espanar as migalhas de pão da minha cama com o antebraço. Por favor, senta, deita, se enrola na coberta e deixa que amanhã o lençol já vai estar seco.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Pombos Vs. Predador

Estava atravessando a rua, no Centro, quando notei que dois pombos disputavam a chegada até a calçada comigo. Fui recuando, já naquela posição de proteção, com as mãos esticadas no ar, como se eles fossem voar a qualquer segundo em minha direção. Tenho pavor das finas que os pombos tiram da gente. Eles nunca voam em nossa direção. Normalmente fogem da gente. Os pombos não voam mais. Agora eles correm como galinhas.

Já perceberam que raramente um ser humano está interessado em lhes amassar a cabeça. Portanto, não precisam mais bater asas. Economizam energia.

Houve um tempo em que as pessoas viajavam pro estrangeiro e não deixavam faltar no álbum uma foto com pombos espalhados pelo corpo. Os bichos faziam parte de um cenário romântico. Hoje são como meninos de rua, caçadores de migalhas. Se eles chegam muito perto, a gente espanta. Se eles entram num shopping, a gente pede pro segurança tomar uma atitude.

Essa ave de origem asiática, que convive há mais de 10 mil anos com o homem, ocupa hoje o quarto lugar em números de chamadas para combate a pragas da Divisão de Controle de Animais Sinantrópicos (aqueles que vivem próximos aos humanos e prejudicam-nos de alguma maneira). Só perdem para ratos, escorpiões e pulgas.

Entraram para a categoria de pragas miseráveis, sem qualquer glamour. São considerados transmissores de doenças e já perderam o título de símbolo da paz há muito tempo. Em Veneza, por exemplo, repelentes específicos e sistema de eletrificação nos monumentos e prédios evitam a aproximação da espécie.

Ao contrário do que muita gente pensa, a abundância de alimentos não é a principal causa da proliferação da ave nas cidades e seu consequente rebaixamento à condição de peste urbana. Segundo a bióloga Mônica Schüller, que estuda o comportamento dos pombos em São Paulo, uma espécie – animal ou vegetal – passa a ser uma praga quando o número de animais que se alimentam dessa espécie diminui, permitindo sua proliferação exagerada.

"Longe de riscos, a espécie encontra condições de se reproduzir descontroladamente, tornando-se uma praga”, explica. Como uma série de outros animais, incluindo nós, os bípedes evoluídos, eles constroem ninhos em qualquer canto e se reproduzem quase que infinitamente.

Vamos pelo mesmo caminho. Produzimos e comemos lixo, invadimos e devastamos todos os campos, brigamos por um pedaço de terra, sonhamos com um canto para construir nosso ninho, nos multiplicamos de forma descontrolada e nos aglomeramos em grandes centros, onde as migalhas parecem ser mais abundantes.

Enfim, somos uma puta de uma praga.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

À procura.

Sempre pensei como adulto, sempre sofri como adulto, mas agora, relendo alguns diários e textos antigos, vejo páginas e mais páginas contendo apenas pensamentos de criança, que criança é essa que aparentemente eu fui e nunca conheci?

Fiquei tentando encontrar uma explicação para entender essa distância tão grande entre o que eu achava que sentia e o que eu sentia de verdade, ou o que eu deixava transparecer através de palavras coloridas com canetas hidrocor, cada letra de um tom diferente de rosa, e só consegui pensar em uma coisa: talvez a intensidade de algumas ideias e pensamentos seja tão grande (para mim e para qualquer um) que quem os têm em mente acaba por sentir-se mais maduro e mais adulto apenas pelo fato de tê-los.

Uma vez a pessoa sendo arrebatada por esses sentimentos tão assustadoramente desconhecidos e não conseguindo compreender a si mesma, ela acaba achando que aquilo só pode ser um sentimento, um sofrimento, um pensamento de adulto, já que nos acostumamos a relacionar a vida adulta com conceitos de sabedoria e maturidade e compreensão de certas lógicas e fatos que uma criança jamais teria a capacidade de entender, a incompreensão, portanto, nos leva a amplificar o sofrimento.

Porém, quando tudo o que parece tão grande dentro da cabeça é transcrito para o papel, podemos perceber toda a imaturidade inoculada em lágrimas para a qual estávamos cegos. Lendo, você consegue avaliar as próprias palavras como se fossem de outra pessoa e, bem, as outras pessoas sempre parecem tão infantis e egocêntricas, não é mesmo? Sim, elas são, e você também é, e eu também sou, mas é impossível perceber isso se não nos olharmos de fora e não nos abrirmos para a análise crítica e impiedosa de nós mesmos, nós que, infelizmente, insistimos em sofrer como adultos por coisas de criança.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Pedregulhos.

A parede da minha sala é feita com pedras do chão da rua. Duas avenidas e três praças me encaram na vertical, com seus pedaços encaixados, confundindo cola com gravidade. Às vezes me esqueço que é parede e erro o caminho. Ando em direção à porta e, de repente, me encontro no teto. E, então, despenco, sem graça, segurando o cós da calça enquanto vou recolhendo as unhas e dentes que perdi na queda. Por favor, não vá me dizer que eu subi na parede porque quis.

Perdi as profundidades, e a realidade eu comi com pão. Me desequilibro nas pedras, rachadas e mal coladas. Me perco em casa. Enfio o dedo na tomada e tropeço no fio da televisão. Vejo os olhares tortos de quem come com calma na mesa da cozinha. Talvez a casa só esteja rodando em volta de mim (ou talvez eu que esteja rodando em volta da casa). Quero mostrar pra você o que eu vejo agora que meus óculos ficaram presos no lustre. Deixe que eu me explique antes de me mandar descer e esquentar a sopa - esquentar não, ferver - para matar até os últimos resquícios de bactérias e sentimentos e lembranças que ainda me permito guardar.

Fico de olhos fechados, torcendo para que eles não quebrem ao meio como o resto de mim. Talvez não exista mesmo mais o que falar, não agora que percorro tantas ruas entre o chão e o teto, não agora que cavei buracos por toda a cidade para me criar uma parede. Você pode me vendar e contar até dez, me empurrar e segurar os meus pés. Não me importa mais o que faça, comigo ou com as outras pessoas, depois que construí minha parede com pedras de rua, em qualquer lugar que eu esteja, me encontro no chão.

domingo, 27 de novembro de 2011

Exame físico

O abdome é dividido em nove quadrantes, os médicos delimitam previamente as linhas do esquartejamento, sobra aos assassinos pouco ou nenhum trabalho. Quero que você vá descendo a lâmina afiada da sua faca na linha imaginária marcada pelos mamilos, aproveite e roube, através deles, minhas melhores endorfinas batidas no leite. Quero que vá rasgando a pele aos poucos, isso, sem medo, sem deixar a mão tremer enquanto me corta, sem limpar o sangue que escorre, meu último desejo é sujar os seus sapatos.
Pela dor que eu sinto você já fez duas linhas verticais, dividiu meu corpo em três, mas as doenças são muitas, são necessários espaços menores para examinar alguém com precisão, não se preocupe, estou aqui para te ensinar, vou mostrar exatamente o que você tem que fazer. Seguro sua mão para te ajudar a abrir os dois últimos talhos horizontais, o primeiro bem na crista da bacia e o outro começando logo abaixo das costelas, imagino que você esteja pensando em como elas ficariam uma delícia defumadas e regadas ao molho de churrasco, queria que tivesse me avisado da sua antropofagia antes que eu te permitisse tomar conta da minha autópsia.
Pronto, estão aí expostos os nove pedaços de mim que você desconstruiu, quero que me diga qual deles apresenta o maior grau de maciez, só não repare essa discreta distensão ali no meio, bem aonde você apoiou a mão trêmula, cansada de tanto me dilacerar, é o resultado de todo o ar que engoli junto com as palavras que tanto ensaiei, mas que fiz questão de não te entregar.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Fratura

Nunca sabemos quando tudo realmente acaba. O beijo roubado que te fez voltar suspirando para casa ou cantando baixinho no ônibus pode ter sido o último. Aquela noite de amor inesquecível talvez não se repita mais. O abraço do amigo, a viagem para Porto Alegre, a conversa na varanda durante a noite fria, o banho de piscina, o pedaço de bolo de fubá com café quentinho, o passeio com o cachorro. De uma hora para outra, aleatoriamente, perdemos a chance de repetir nossos melhores momentos, e ficam apenas fragmentos, fantasmas guardados nisso que chamamos de memória.
Não dói a ausência. Dói isso que fica. Esse processo penoso que chamamos de luto não é falta, é presença. A chaga, a fratura, o órgão dilacerado, é esse vulto, essa imagem difusa que não nos deixa, a permanência do que não existe mais. O último “eu te amo” dito é um fêmur que se parte em dois e que rasga o músculo. O primeiro segurar na mão dela é a clavícula exposta quando tudo termina. O beijo que você relembra a cada fechar de olhos é um maxilar feito em pedaços.
Somos a soma de nossos encontros durante a existência, e alguns deles são feridas que nunca cicatrizam. No fundo, é a felicidade que mutila. Só o que é intenso deixa marcas, só o inesquecível rasga a carne. E não adianta não se colocar no mundo, não adianta fugir do outro, não adianta se esconder. A única alternativa viável para permanecer intacto é não viver.
Sendo assim, jogue-se. Quebre-se. Frature-se. E tenha orgulho de cada uma dessas marcas.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A nostalgia e o metal


Na sexta-feira de 04 de abril desse ano, um dia antes do show de Ozzy Osbourne na Arena Anhembi, em São Paulo, assisti a um especial da MTV sobre o príncipe das trevas. O programa mostrava Ozzy no estúdio com sua nova banda, gravando videoclipes e até participando de uma pegadinha com seus fãs. Fazendo uma alusão ao refrão de seu novo single, ‘Let me hear you scream’ (Deixe-me ouvir você gritar), a produção da MTV retirou a estátua de cera de Ozzy de um museu em Los Angeles e pediu para o próprio vocalista ocupar o local. Ou seja, Ozzy ficava ali paradinho esperando a chegada dos fãs. Quando alguém se sentava ao lado da ‘estátua’ para tirar uma foto, Ozzy se mexia e dava um susto. Fizeram isso umas 50 vezes, ri em todas.
Comecei o texto falando sobre isso porque a brincadeira dá dimensão de quem é o ‘personagem’ Ozzy Osbourne hoje em dia. Quem acha que Ozzy é apenas um vocalista de heavy metal não tem noção do que representa sua figura para a cultura pop. Ozzy é um Nosferatu pós-moderno, com tudo de paradoxal e farsesco que isso representa. Sim, ele é vocalista de heavy metal e um dos principais pioneiros do rock pesado em todo o mundo. Mas ele também é um rufião que sabe muito bem transformar sua imagem de louco em milhões de dólares.
A carreira de Ozzy começou como a de dezenas de outros rockstars: lançando um disco atrás do outro, fazendo turnês exaustivamente longas por todo o planeta, consumindo álcool e drogas em quantidades assustadoras para os padrões da população ‘civil’. Desnecessário dizer que Ozzy e seus companheiros da formação original do Black Sabbath – o guitarrista Tony Iommi, o baixista Geezer Butler e o batera Bill Ward – praticamente inventaram em 1969 o heavy metal como conhecemos hoje, pelo menos a escola mais ‘escura’ desse estilo de tantas vertentes.
Ozzy ficou apenas dez anos no Black Sabbath, mas foi o suficiente para criar obras clássicas, como os discos ‘Black Sabbath’, ‘Paranoid’, ‘Master of Reality’, Sabbath Bloody Sabbath’ e outros. Ozzy saiu e engatou uma bem sucedida carreira solo; o Sabbath também se deu muito bem ao contratar o (recém-falecido, infelizmente) vocalista Ronnie James Dio e criar um novo catálogo de clássicos de estilo um pouco diferente.
A partir do lançamento do primeiro disco de sua carreira solo, ‘Blizzard of Ozz’, em 1980, ficou claro que Ozzy não era mais apenas um vocalista de heavy metal. Ele era Ozzy Osbourne, príncipe das trevas.
Tudo ficou mais exposto com o reality show The Osbournes, que mostrava o dia a dia na casa de Ozzy e sua família. A série ridicularizava o roqueiro mostrando que ele obedecia cegamente à mulher em tarefas mundanas e parecia um fantoche dentro de sua própria casa. Por outro lado, o show rendeu milhões de dólares e levou a imagem de Ozzy a um público que normalmente teria medo dele ou, pelo menos, antipatia.
Mostrou que, por trás da imagem vendida durante anos de ‘príncipe das trevas’, Ozzy não passava de um tiozinho meio atrapalhado e inofensivo. Como fã de Ozzy, achei meio desrespeitoso. Hoje entendo que não era nada disso. Essa imagem foi pensada e construída ardilosamente por Ozzy e Sharon Osbourne, sua mulher e empresária.
Percebi isso na entrevista coletiva que Ozzy deu em São Paulo, em matéria da TV Estadão. Ozzy diz que nunca mais fará um programa de TV, atribuindo ao estresse das gravações o câncer da mulher Sharon e o envolvimento dos filhos Jack e Kelly com drogas. Dito isso, que deve ser verdade, Ozzy disse na coletiva que tem uma vida normal e que seu dia a dia consiste basicamente em limpar o cocô dos cachorros a mando da mulher.
Achei isso meio forçado porque essa foi justamente uma das cenas mais famosas do reality show. Ora, estamos falando de algo que a TV mostrou há anos. É inconcebível imaginar que a vida de Ozzy em casa ainda é pegar cocôs de cachorro no chão. Portanto, ao que parece, Ozzy ‘usa’ deliberadamente a imagem que o reality show exibiu, optando por divulgar uma imagem planejada vis-à-vis sua imagem real: a imagem de um tiozinho meio atrapalhado e inofensivo já está espalhada, não é preciso explicar muita coisa. Ao usar essa imagem conscientemente, Ozzy deixa de ser o Ozzy-vocalista-de-heavy-metal e se torna Ozzy-o-ídolo-da-cultura pop-personagem-de-reality-show. É mais fácil ser um Nosferatu pós-moderno do que um artista que continua se desafiando artisticamente após tantos anos de carreira.
Quando sobe ao palco, no entanto, qualquer resquício desse personagem desaparece. Lá não tem Sharon Osbourne para encher o saco, nem produtores de reality show ou marqueteiros. Lá é o lugar de Ozzy e sua banda de garotos que poderiam ser seus netos. E se tem um cara que sabe montar uma banda de rock pesado, esse cara é o Ozzy.
Ozzy já trabalhou com alguns dos melhores guitarristas do mundo. Ele tem faro, sabe escolher um desconhecido em transformá-lo em um guitar hero. Tudo bem, isso na Califórnia nem é tão difícil assim: lá os guitar hero crescem em árvores. Mas Ozzy tem o seu mérito; basta ver a lista de guitarristas que passaram por sua banda.
Depois de Tony Iommi, Ozzy descobriu Randy Rhoads. O baixinho loiro ex-Quiet Riot precisou de apenas três discos para entrar para a história do rock. Basta ouvir os riffs e solos de ‘Crazy Train’ e ‘Mr. Crowley’, considerados até hoje solos mais incríveis da história da guitarra. Rhoads morreu cedo, vítima de um estúpido acidente aéreo, e a partir daí outros grandes guitarristas começaram a se revezar no estúdio e no palco, sempre ao lado esquerdo de Ozzy: Brad Gillis, Jake E. Lee, Zakk Wylde e, agora, Gus G.
Ao contrário do Iron Maiden, que tocou no show da semana anterior ao dia 04, um repertório composto basicamente por músicas novas, Ozzy foi mais populista e cantou praticamente apenas velhos sucessos. ‘Let me Hear You Scream’, a segunda do show, foi a única exceção. Mas a música é bem legal, então o ritmo do show não foi quebrado em nenhum momento. ‘Mr. Crowley’ dispensa comentários, e pudemos ver o talento do guitarrista grego Gus G. Quem é fã de Ozzy, gosta que seus guitarristas mantenham os solos originais, principalmente os de Randy Rhoads, que são inesquecíveis.
Foi nessa hora que a chuva começou a cair com mais força. E continuou assim até o final do show, incomodando todo mundo. Para mostrar que não tinha medo de água, Ozzy jogou um balde de água sobre a própria cabeça. ‘Fuck the rain!”, gritou, em mais um arroubo de sua já conhecida educação britânica.
Assistir a um show debaixo da chuva é péssimo, não importa quem é o artista. Acho que mandar aquela quantidade de chuva deve ter sido uma vingança dos deuses, provavelmente inconformados com a popularidade do príncipe das trevas. Sagrado ou maldito, Ozzy é uma voz única, muito mais interessante e talentosa que a imagem de tiozinho meio atrapalhado e inofensivo vendida pela TV. Eu prefiro o Ozzy do palco.

domingo, 13 de novembro de 2011

Toca baixo.

Seria pretensão da minha parte dizer que não faço parte desta manada desenfreada e cheia de freios. A minha volta, mulheres teoricamente felizes, mães, esposas independentes, com seus cardápios da semana colados na geladeira, com os horários de todas as atividades das crianças em dia, com as viagens de férias planejadas, com suas babás de branco, com os presentes do próximo amigo oculto devidamente comprados e com presença confirmada em todas as festinhas de crianças. A massa segue, como um rolo compressor, achatando, tornando chato, tudo aquilo que encontra pela frente.
Donos de um nada que é tudo pra eles e de um medo de perder um poder que desconheço. Olho aquilo tudo e penso: Eles trepam. Eles fazem bebês com nomes da moda. Eles não usam drogas. Eles se suportam bem. Eles doam brinquedos para orfanatos. E violência, na cabeça deles, é ter o carro roubado.
Em silêncio, penso: Estou matando tempo. O tempo está me matando. Estou cercada de gente que não tem nada a ver comigo. É isso. Sou eu que estou no lugar errado. Preciso rir e sair daqui. Preciso encontrar aquele músico que parecia conhecer todo o meu corpo. Quantas vezes já suspirei em reuniões, incluindo as de pauta, por estar com a cabeça lá, naquela noite fria, quando encontrei um cara que deveria se chamar quem diria. Intenso e suave. Mãos fortes e um encaixe absurdo e exaustivo. Poucas palavras, muita informação. Dedos que pareciam varas de condão. O cara toca baixo, os músicos são mágicos. Baixo e bateria sempre em sintonia.
Talvez meu mundo fosse melhor ou mais fácil se eu deixasse de ser tão contestadora. Se eu buscasse um caminho menos árduo e me entregasse ao mundo mágico do Mickey Mouse ao invés de me apaixonar pelo Mickey Knox [personagem Woody Harrelson em Natural Born Killers]. Não foi uma escolha. Desde a infância, meu príncipe encantado, escrachado e, de bolso furado, era de massinha e tomava milhares de formas. Já me casei com meu professor de natação, com o John Malkovich, com o Roger Federer e até com o Lemmy Killmister.
Eu não quero carros. Não quero o controle nem as marchas. Não quero a sorte de um amor tranquilo. Amores inquietos são mais produtivos. Quero aquele sexo que dá barato. Quero um cara que me toque baixo.

Direção.

A direção do futuro é aquela para a qual aponta o medo. Siga-o, pois o medo não deve ser maior que o desejo de confrontá-lo. O medo é uma aliança no dedo daqueles que noivaram com o próprio destino, para o qual vitórias e derrotas não existem. Não há luta a ser ganha além daquela travada sem nosso consentimento, da qual só conhecemos o resultado: a escolha dos nossos desejos. Não escolhemos nossas escolhas, logo, não escolhemos enfrentar ou não o medo. O que nos diz respeito são as respostas que inventamos para justificar as escolhas que independem de nós. É pelo teor das respostas que intuimos termos enfrentado ou não o medo e atingido o futuro. Nosso livre-arbítrio é reativo. As tragédias gregas tratam exatamente disto, de como o herói não cansa de querer interpretar seu destino mesmo ciente de que fatalmente o cumprirá, ainda que já o conheça de antemão.

Das tripas coração.

Sempre fiz e faço das tripas coração para manter minha menina escondida. Dentro de um baú, eu a deixo sentada e calada. Fora do baú, ela aparece como marionete, como uma mulher[zinha] barata que finge saber o que quer e escreve o que todo mundo já leu. Engana a torcida e parece saber tudo da vida. Faz gestos e amigos como se soubesse o que é e aonde pretende chegar. Nega os padrões que mal conhece por medo de errar. Já se casa com medo do dia em que vai acordar e gritar: ‘estou pronta para me separar’. Anda em linha reta e, às vezes, tropeça e pede pressa para amar. Por trás da palhaça que escreve textos sinceros e abre o verbo no sexo, ela fecha as pernas. Os olhos arregalados e assustados entregam seu medo meigo de não agradar.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Complexo de Wendy.

Ontem, pensei que seria ótimo ser o Peter Pan. Mas o Peter Pan é menino. Não, acho melhor ser a Wendy. Não que eu tenha problemas com isso, porque, em realidade, a minha "porção masculina" é bastante forte, consigo pensar "como homem" em diversas situações. Meus amigos homens até de certo modo incluem-me no grupo, porque sabem que sou uma mulher um pouco diferente das outras. Compreendo os homens e seus "mecanismos". Em realidade, Wendy também é uma menina diferente, já que é inserida em um universo completamente masculino na Terra do Nunca, e adapta-se muito bem a toda aquela situação de aventuras e lutas com os piratas e o Capitão Gancho. E torna-se também uma espécie de líder. Líder sentimental. É a "mãe" que eles precisam, e também a conselheira, a ouvinte incondicional, o elemento apaziguador, o braço forte travestido na figura frágil. Assim, penso que sofro de algo que resolvi chamar de "complexo de Wendy".
Mas, ainda assim, minha porção masculina queria mesmo era ser o Peter Pan, e não pelo mesmo motivo que levaria todas os homens do mundo a quererem a mesma coisa, ou seja, ser Peter Pan para não crescer nunca. Não. Eu queria ser o Peter Pan, ao menos por alguns dias, porque descobri que o Peter Pan, além de não crescer nunca, não compromete-se sentimentalmente com ninguém e nem com nada. E não comprometer-se sentimentalmente, explico logo, não é "não amar", ou "não odiar", nada disso. Não comprometer-se sentimentalmente é amar ou odiar algo ou alguém sem ter a plena consciência disso. Peter Pan não entende os conceitos de amor e ódio. Peter Pan apenas preocupa-se em ter pensamentos felizes para continuar voando, sempre. Voar é ser livre. É só isso que Peter quer. Peter não quer amar, e nem odiar, e ele pouco se importa se é amado ou odiado. Peter ama e odeia independentemente de sua vontade: ele não tem consciência de seus sentimentos. Não se preocupa com os sentimentos. Deve ser interessante sentir amor ou ódio sem ter consciência deles. Sem saber que "eles" estão ali, dentro de você.
As crianças, todas, são como Peter Pan. Elas amam e odeiam, com a mesma intensidade, mas não são cientes de seus sentimentos fortes e ambíguos. Sentem: choram, sorriem, ficam bravas, têm raiva, gritam, dão gargalhadas, tudo com a mesma intensidade, e depois voltam ao seu estado normal com a maior naturalidade, como se nada tivesse acontecido. Os adultos, geralmente, relevam esses seus comportamentos, porque as amam incondicionalmente. O único amor incondicional que existe é o de mãe-filho e pai-filho.
A criança não tem muita preocupação se sua atitude vai provocar amor ou ódio nos outros. Ela é completamente descomprometida sentimentalmente. Não precisa explicar seus sentimentos. Explicar os sentimentos é a parte mais complicada das relações humanas. Isso é tarefa nossa, dos adultos, mas descobrimos cedo que também não sabemos como fazê-lo, e, um dia, chegamos à conclusão de que seria ótimo voltar a ser criança, para não comprometer-se sentimentalmente.
E então, o que concluo é que Peter Pan não queria crescer jamais não apenas pelo prazer de ser criança pelo resto da vida, mas, isso sim, pela certeza de que nunca precisaria comprometer-se. Não precisaria sofrer por amor ou por ódio. Jamais. E poderia voar sempre. E saberia que a Wendy estaria sempre lá, esperando por ele.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011


O ano era 2003. Eu tinha 11 anos e estava viajando para as praias em Natal – RN com meus pais. No caminho de ida paramos em um posto e achei a fita k7 do acústico MTV do Nirvana. As fitas já começavam a entrar em declínio e as lojas liquidavam as poucas que ainda restavam nas prateleiras. Comprei por uma bagatela e passei a viagem inteira ouvindo sem parar essa música, o que era trabalhoso para repetidamente rebobinar diversas vezes até uma faixa específica. Quem teve o mínimo de contato com as fitas k7 sabe o que estou falando. Passei anos sem ouvir Nirvana. Meu CD do Nevermind (o primeiro ou segundo que comprei na minha vida, não me recordo qual foi o primeiro entre este e o Apettite For Destruction do Guns N Roses) acabou perdido em uma de minhas várias mudanças, junto com outros discos formadores de meu caráter musical. Hoje, por alguma razão pensei nessa música, e percebi que ainda soa incrívelmente bem. É uma pequena obra-prima do rock and roll, com uma ótima letra. Valeu, Cobain.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Me queira bem.

Há quem diga que bêbados são sábios ou incovenientes. Incovenientes são mesmo, é fato. Sábios, só até quando o álcool permite. Algumas horas depois daquele gole, a gente parece que sabe de tudo, tem a verdade absoluta. Eu estava um pouco assim hoje. Eu estou um pouco assim.
Cada gole, uma lembrança boa de você, uma vontade imensa de cuidar de mim, de ser melhor para mim, para os outros. Vontade de continuar a sentir encantamento, dádiva de algo que não se repete. Uma pessoa, outra pessoa: Deus em algum lugar.
Alguns drinques, uma noite sem grandes expectativas. Acontecimentos banais.
Espero que você não esteja detestando tudo isso: é boa a sensação de não sentir vergonha de nada que eu seja capaz de sentir.
Acabo de ver coisas, ouvir coisas. No filme, há um princípio da coincidência regendo tudo. Um princípio que explica as precariedades da vida. Não sei se há coincidências, acredito que há sol até nas noites.
A vida segue, o belo é que nós não somos descartáveis. Há alguém muito perto do outro, que olha, que observa. Faz sorrir. E há alguém que está, mesmo sem ser, como se não precisasse, imperceptível.
Tenho um jeito meio desajeitado de dizer as coisas, meio prolixo, meio cheio de curvas, um jeito tão sem precisão que me faz ter vergonha de fazê-lo. Não: decidi não sentir vergonha de nada que eu seja capaz de sentir.
E essa madrugada? Eu, sinceramente, acho que o tempo vai fazer eu me esquecer de você e você se esquecer de mim. Por isso, escrevi isso. Para deixar registrado.
Eu me sinto melhor com tua presença. Aí. Aqui. Acima das nossas cabeças.
Fique feliz, fique bem feliz, fique claro. Queira ser feliz. Te envio as melhores vibrações.
Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas, que seja bom o que vier: para mim, para você.
Te escrevo isso por absoluta necessidade de sinceridade. Hoje tem noite e amanhã tem sol.
- Me queira bem.