terça-feira, 26 de junho de 2012

Termostato

O saudável esquecimento da dor parece implicar também, e necessariamente, no esquecimento do prazer. Isso faz surgirem algumas perguntas: será que o esquecimento da dor (de toda dor) é mesmo saudável? E será que o prazer também é esquecido porque sua lembrança provoca o medo de mais dores? Será que quem consegue esquecer a dor teme também o prazer?
Uma espécie de termostato da memória parece ligar a dor e o prazer como sensações que guardam certas semelhanças, seja por efeitos físicos, psíquicos e até de origem supersticiosa ou cultural, não sei. Sei que, por isso, temo esquecer a dor. Temo que, com isso, minha economia mental me proíba de lembrar do prazer.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Chiclete


Na maior parte das vezes é um trecho de música, mas pode ser também fala de filme, verso de poesia ou uma frase solta, sem qualquer sentido aparente – é o que, na falta de nome melhor, chamo de pensamento chicletoso. Ele chega sorrateiro, você nem percebe: quando se dá conta, já está lá, instalado no trapézio da consciência como uma visita na poltrona da sua casa, numa tarde de domingo, grudado aos seus neurônios como chiclete na sola do sapato.

Dia desses, por exemplo, acordei com dor de cabeça, entrei numa ducha fria e, assim que a água bateu na testa, revolvendo ideias há muito adormecidas nas catacumbas da memória, vi-me repetindo, inteirinha, a fala do vilão de um dos piores desenhos animados que já existiram, Thundercats: “Antigos espíritos do mal, transformem essa forma decadente em Mumm-Ra! [Pausa] O de vida eternaaaaa!”. Faz quase quarenta e oito horas que, a cada vinte minutos, mais ou menos, minha vida é interrompida pela evocação maligna de “Mumm-Ra [pausa] o de vida eternaaaa!”. É como um vício: cigarro mental ao qual volto inúmeras vezes, do momento em que abro os olhos até a hora de fechá-los novamente.

Há pensamentos chicletosos que somem depois de um tempo, mas outros ficam para sempre, agarrados aos rabinhos dos neurônios. É o caso, por exemplo, de um trecho da trilha sonora de Pulp Fiction, que contraí ao assistir o filme, numa remota noite e, desde então, vai e volta das trevas para a consciência, da consciência para as trevas, ao seu bel prazer: “Get Down, get down! Jungle booggie. Tananananã!”. (O tananananã é a parte instrumental). Estou cansada. No meio de uma aula importante: “Get Down, get down!”; enquanto espero o ônibus no ponto: “Jungle Booggie!”; com a cabeça no travesseiro: “tananananã”.

De todos os exus mnemônicos com quem convivo, contudo, os piores são as músicas infantis. Minha mãe não sabe, mas no almoço de ontem, enquanto discutíamos uns pormenores sobre o vazamento no box do chuveiro, meu ar de cansaço nada tinha a ver com a preguiça de resolver os perrengues domésticos: era o resultado de uma manhã inteira ouvindo, ininterruptamente, “serra, serra, serrador, serra o papo do vovô”, no maldito rádio instalado dentro do meu cérebro. “Atirei o pau no gato” eu canto tanto, mas tanto, que já não me basta o português. “Atiré el palo en el gato…” ou “I threw the stick on the cat” são a música de fundo de boa parte dos momentos que passo acordada.

Outro dia, tive a mórbida alegria de descobrir que meu ídolo, Julio Cortázar, também sofria de acessos semelhantes. Numa crônica do livro Um tal Lucas, o escritor argentino conta que, no meio de um banho, pegou-se dizendo, com “visível prazer vingativo: Now shut up your distasteful Adberkunkus!” (Agora cale-se, seu intragável Adberkunkus). Só no fim da chuveirada, depois de repetir a admoestação várias vezes, foi se perguntar quem, ou o que, seria um Adberkunkus.
A alegria por saber que minha loucura era compartilhada pelo ilustre escritor, contudo, durou pouco: mal fechei o livro e abri a geladeira para pegar uma coca, me vi gritando, mentalmente: “Agora cale-se, seu intragável Adberkunkus!” – em português, inglês e espanhol.

Já desisti de me curar. Encaro como uma doença crônica, que vem e vai. O negócio é tocar pra frente – “get down, get down!” -, aproveitar bem os intervalos – “serra o papo do vovô” – e tentar ser feliz assim mesmo – “jungle boogie”–, sabendo que certas coisas não se calam, por mais intragáveis que sejam, e por mais que imploremos em todas as línguas, conhecidas ou inventadas – “tananananã.”

Confissão

Hoje olhei longamente uma frase sua. Só olhei. Ela não dizia nada de importante, mas ela era você, cada palavra um pedaço seu, uma coisa que saiu da sua cabeça, das suas mãos, da sua vida. Eu olhei tanto pra essa sua frase que quase me confundi toda dentro dela, mas você não sabe disso, você não me conhece. Pensei em escrever algo. Não adiantaria nada. Porque você não me conhece e uma frase minha precisaria dizer tanta coisa que não caberia numa frase, nem em muitas.

domingo, 17 de junho de 2012

Teatro

Pode ficar calmo, dessa vez estou mais dengo do que dentes. Melhor se descreve o que se tem perto dos olhos (façamos com os sentimentos), de longe, inventa-se mais (bom para literatura, não para viver cotidianamente com saúde). Posso rir das gaiolas, porque me fiz em uma delas. Nós dois somos falatório. Nossos monólogos, coletivos. De certo modo, estou dançando com você a valsa das pegações. Já fiz das tripas coração, agora estou aprendendo a pensar. Sei que estou em guerra, e vencendo, porque pela via do afeto (esta frase é todo o meu currículo arrogante). Mas nem sei se sou uma muher, ou se só um corpo de neblina. Chegou o inverno, mas o dia sempre amanhece, uma espécie de ressurreição até para os vampiros.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Agelastos

Tenho medo de sapo; de raio; de guerra; do bolo queimar; de contemporizar demais; da minha raiva; da saudade. Mas do que eu tenho mais medo, mais medo mesmo, é de uma coisa que eu acabei de aprender com o Milan Kundera: os agelastos, aqueles que não sabem, não querem e não gostam de rir.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Dia doze

Erros de português que adoro cometer: colocar alguma coisa "de assim"; isso é só "entre eu e você"; vou assistir "o" jogo; quero ir "no" banheiro; prefiro isso "do que" aquilo; o peixe tem "espinho" e o melhor de todos, que deveria ser considerado correto, em nome do amor: "fica comigo".

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Valores

Imagine que tenho uma mala muito pesada com um milhão de moedas de ouro. As alças ficam penduradas no meu pescoço, me forçando a cabeça para baixo, retesando os músculos do olhar pra frente.
Vez ou outra, uma pessoa da rua passa e tenta me roubar. Mas, por mais que esteja tão pesado e doendo e estragando a minha coluna, luto até a morte pra proteger a tal da mala. Automaticamente me atiro contra o chão, como se protegesse um filho das balas. São terríveis esses quilos centralizados no ponto mais fraco do meu corpo, mas pra violência a gente não entrega nem os fardos.
Também, às vezes, uma pessoa da rua se oferece pra carregar a mala pra mim. Ou pra guardar em sua casa. Ou pra dividir o peso ao estilo “uma mão em cada alça”. Também não consigo entregar meu arqueamento e tamanho para essas pessoas. O amor gentil nunca me conquistou. Gentileza é coisa pra quem nunca será íntimo. Solidariedade é coisa pra campanha política. Felicidade é pra quem se conforma em ficar num lugar só porque está bom.
Mas muito de vez em quando, como acontece, aparece uma pessoa que não me pede nada e pra quem eu tenho vontade de entregar cada moeda da minha mala com um milhão de moedas de ouro. Tome, leve, gaste, use, encha a sua banheira com elas e depois me mande uma foto.
Eu sou uma mendiga ao contrário.
Não são por essas coisas que não se ama. Não são por essas coisas que se ama. Essas são apenas as coisas sobre as quais conseguimos falar na nossa ânsia de ocupar a cabeça enquanto nos encaramos um pouco assustados.
A verdade é que, no meio da multidão, estamos carregando nossas malas pesadas de riquezas e belezas e sentimentos. E uma hora, só porque acontece e não se pode explicar sem parecer ingênuo e arrogante, escolhemos uma pessoa que nos leve.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Nada

Originalmente, pena é o mesmo que punição. Quem merecesse pagava uma pena, ou um preço que corresponderia à punição pela falta cometida. As coisas que valem a pena, dessa forma, valem a punição que elas implicaram. Se pensarmos bem, portanto, só vale a pena na vida o que não vale pena alguma, pois aquilo que implica em pena não vale nada.