sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Nada


Não, nós não temos nada. Não somos nada um do outro. Semana passada vimos um filme péssimo, um dos piores que eu já vi e a minha vontade no cinema era de deitar a cabeça no seu ombro e viver. Se passassem dois anos, eu não notaria. Não chegamos a sair de mãos dadas do cinema, não temos esse hábito. Nos esbarramos várias vezes, nossos braços se batem de uma forma que se fosse em qualquer outra pessoa, me incomodaria muito. Mas não em você. Você adora.

Nós não somos nada, então não nos beijamos em público o tempo todo, só às vezes. Fomos tomar sorvete e você estava sem barba, nessas horas eu penso que se nós fossemos alguma coisa, eu nunca deixaria que você tirasse a barba, mas não posso dizer mais, senão vou ter que revelar que acho você incrivelmente lindo do outro jeito e eu não quero – ou não posso – me entregar assim.

Quando você disse que gostava de mim – bastante – a primeira coisa que eu senti foi verdade, mas logo veio um medo. Você diz coisas que não fazem o menor sentido e discute assuntos que eu não quero nem ouvir e então eu dou graças a deus por nós não sermos nada. É tão mais fácil. Mas aí acontece de eu não querer dormir sozinha de jeito nenhum e pensar em ligar pra você. Uma parte de mim, confesso, preferia que você não atendesse, mas você atende e vem até aqui e nós assistimos ao nosso preferido juntos. Rimos alto e nos olhamos, procurando a alegria compartilhada. E ela está ali, no sofá, esparramada, à vontade. Meu relógio anda em pulos e só durmo quando amanhece. Interrompo raciocínios com beijos afogados e desesperados e pausados e pesados e saudosos.

Estou cheia de nada, enquanto me preparo para o vazio de amanhã.

sábado, 15 de setembro de 2012

Conselho


Foda.

Foda os seus dias de pessoa vacilante e medrosa. Foda o menino com espinhas que não teve coragem de te namorar. Foda os dias de sol forte na praia e a vontade de tirar o biquíni pra cair nua no mar. Foda o autoritarismo de quem acha que pode mais. Foda o desejo de abandonar o escritório e ir ao cinema comer pipocas.

Foda o relacionamento enrolado tão difícil de cortar. Foda a amizade que é só amizade. Foda o amor que é menos que amor. Foda a noite só em frente à televisão ou na internet fuçando na rede social. Foda o pânico da solidão. Foda o que só se repete. Foda o livro há semanas na cabeceira. Foda a idade, a vaidade e a maldade que às vezes aflora e te deixa sem eira nem beira.

Foda a raiva, a tpm e o rancor. Foda o desejo de dar agora. Foda o sexo em si, a coisa em si, e não saber o que é o ser-para-si. Foda o que não vai para frente, a pedra no meio do caminho, o que ficou para trás, o impasse.

Foda muito. Foda-se.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Constatação


Quando estiver amanhecendo e eu acordar, antes mesmo de a consciência perceber que horas são, preciso me lembrar do seguinte: as flores que nascem nos telhados não estão em seu ambiente natural, mas estão mais próximas do céu. Quando estiver amanhecendo e eu acordar, basta me lembrar que não importa qual dia é hoje. O que importa é que é o princípio de alguma coisa.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

(re)Mar


Tem dias em que penso que preciso mesmo é de um barco.

Quando era criança, costumava me sentar na beira do mar com meu tio e jogar pedras nas águas paradas. Costumava comprar um picolé de morango e um suco sem açúcar, com gelo.

Mais tarde, a vida me afastou do mar e do meu tio, e eu fui boiando por aí. Mas nada parecido com o boiar tranquilo de quem se deita com a barriga para cima, olhos fechados, sorriso tranquilo. Era mais um boiar pré-afogamento, apenas a cabeça fora d’água, braços e pernas se sacudindo para evitar os golpes de mar no rosto.
Tem dias em que penso em trocar tudo por um barco.

No meu boiar atrapalhado consegui juntar uma série de coisas: inseguranças, mágoas, traumas. Consegui também juntar dinheiro. Pouco dinheiro. Mas o suficiente para um barco. Para algum barco.

Comprei um barco. Algum barco. Mas o mar não era mais o mesmo. As águas não estavam mais paradas, as pedras não gostavam mais de quicar e desenhar círculos perfeitos. Ninguém mais me vendia picolés de morango. Ninguém mais me pedia sucos sem açúcar, com gelo.
 Percebi então que mesmo antes desse barco eu já tinha um barco. Eu só não tinha remos, e meu novo barco veio sem remos, e me cansei de ser uma pessoa que tem barcos mas não tem remos.

Pensei então em pular do barco. Dos barcos. Dos dois. No meio do mar que não é mais parado.

E isso seria, talvez, a primeira remada de minha vida. A primeira e a última.

Tem dias em que penso que tenho é barcos demais.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Verdade camuflada


Declaro que faço parte dessa juventude de olhos cegos, mãos atadas e pensamento paralítico. Declaro que, no direito inalienável do meu silêncio, compactuo com todas as atrocidades cometidas diariamente contra toda sorte de pessoas: da fome ao preconceito, do desemprego à depressão. Declaro ainda que, como representante da classe, penso apenas em mim, nas minhas coisas e nos meus objetivos particulares. Desde cedo, aprendi que a felicidade é algo que devo buscar por mim mesmo, algo que não pode ser construído coletivamente.

Prefiro indiscutivelmente ser um indivíduo a ser um cidadão. Esnobo a puta e o mendigo, não os encaro. Percebo que sou frágil; tenho medo, muito medo. Da morte, da solidão e da polícia. Não vou às ruas. Não tenho causas nem preceitos. Não vejo motivo para protestos porque acho que as coisas estão indo sempre muito bem. Declaro que não sou conservador nem liberal, porque pouco sei da política. Como todos os outros, reclamo por entre os dentes, digo que o Brasil não vai pra frente mesmo, que os políticos são todos uns safados. Declaro que acredito na verdade que me chega pela televisão, não preciso de outras fontes.

Minhas músicas são meu combustível diário, coloco os fones nos ouvidos e afasto-me da realidade, crio uma barreira entre mim e o que acontece ao meu lado. Declaro que sou guiado pelo prazer a qualquer custo, a qualquer tempo. Sempre corro, não sei de quê, não sei pra onde. Prefiro não saber o que nos move à frente, ou ainda, o que não nos move. Declaro que faço parte da massa pálida e descafeinada que engrossa as filas de emprego sem se questionar e sem protestar. Somos uns cordeiros, todos. Tenho fé ainda de que a felicidade virá na caixa do Sucrilhos do dia seguinte. Declaro que meu projeto mais ambicioso é erguer minha casa de gramado verde e cercas brancas e construir uma família onde vivamos todos tal e qual o comercial de margarina.

Eu, filho do carbono e do amoníaco, espero sempre. Pelo beijo ou pelo escarro. De minha face, contudo, nenhum músculo se moverá. Declaro, em nome de todos que represento, que optamos por ser assim, que é nossa escolha estar sempre indiferente ao que quer que seja, que temos até um certo orgulho em não sermos mais do que pedaços inertes de plástico.