terça-feira, 2 de outubro de 2012

Desejo inconsciente


O sonho começa comigo mascando chiclete.

Possui sabor de tutti-frutti, daqueles que só havia na minha infância. Ele ocupa toda a minha boca. Com o tempo o sabor original se mistura a tudo que o ato de mastigar sem engolir drena de meu sistema digestivo, e o doce se torna ácido, azedo. A essa altura a goma já havia crescido e ocupado tudo, grudado em meus dentes, em minha língua, no céu da minha boca. Já não é possível me livrar do chiclete com um simples esforço.

Levanto pra ir ao banheiro e separar a goma de minha boca. Não há caminhos até o banheiro, gera um corte de cena e me vejo debruçada na pia, mãos dentro da boca para desgrudar o chiclete, que demora a sair. Quanto mais eu puxo, mais parece que sou eu me despedaçando ali. Já não há mais a cor falsa da goma tutti-frutti. A porta começa a balançar e mal consigo grunhir para avisar que o banheiro está ocupado.

Saio do lavatório ainda com a boca ocupada, sem conseguir me expressar. Um homem grisalho e de suéter, me repreende. “Depois desse tempo todo, você ainda não conseguiu?” Abaixo a cabeça, e ao levantar a vista me deparo com um avião vazio. Poucas pessoas ocupam lugares esparsos. De vez em quando uma se levanta, se dirige para a porta e pula. Ninguém parece se incomodar.

Olho pela janela e vejo apenas o céu matinal, tanto aos lados quanto sob o avião. Pergunto à comissária se ainda é dia. “Ainda é dia, mas não é mais cedo”. Questiono a altura em que nos encontramos. Ela ri. “Altura? Acho que ainda nem saímos do chão”. Respondo com dificuldade, “E esse azul sob a gente? E esse céu?” “Céu? Eu só vejo chão”. E saiu de perto de mim para ir até a porta e pular.

Me sento ao lado de uma senhora idosa. Ela me diz que adora conversar, mas que está cansada e quer apenas ouvir uma canção. Faço sinal negativo com a cabeça; não consigo nem mesmo balbuciar a frase explicando os motivos de não poder mais cantar. Ela se irrita e diz que não canto porque não quero; se levanta, vai até a porta e pula.

Vou até a porta também. Olho para baixo e vejo o mesmo azul sem fim, sem norte, sem referência, sem profundidade. Um homem para a meu lado e diz que é gostoso pular, mas que eu não deveria fazê-lo. Minha vontade é perguntar por que só eu não devo, ou se ninguém deve, ou o que há de gostoso no azul, ou por que não consigo falar. Em vez disso, olho para ele e aponto minha própria boca. “Você pôs na boca o chiclete, não? Então fique firme e continue no avião”.

Com muito esforço, pergunto apenas “Por quê?” Ele me responde: “Se você sair não há mais avião”, e me puxa para trás.

Caio de costas em minha própria cama, suada, com um filete de sol em meu rosto. Ainda é dia, mas não é mais cedo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário