quinta-feira, 21 de junho de 2012

Chiclete


Na maior parte das vezes é um trecho de música, mas pode ser também fala de filme, verso de poesia ou uma frase solta, sem qualquer sentido aparente – é o que, na falta de nome melhor, chamo de pensamento chicletoso. Ele chega sorrateiro, você nem percebe: quando se dá conta, já está lá, instalado no trapézio da consciência como uma visita na poltrona da sua casa, numa tarde de domingo, grudado aos seus neurônios como chiclete na sola do sapato.

Dia desses, por exemplo, acordei com dor de cabeça, entrei numa ducha fria e, assim que a água bateu na testa, revolvendo ideias há muito adormecidas nas catacumbas da memória, vi-me repetindo, inteirinha, a fala do vilão de um dos piores desenhos animados que já existiram, Thundercats: “Antigos espíritos do mal, transformem essa forma decadente em Mumm-Ra! [Pausa] O de vida eternaaaaa!”. Faz quase quarenta e oito horas que, a cada vinte minutos, mais ou menos, minha vida é interrompida pela evocação maligna de “Mumm-Ra [pausa] o de vida eternaaaa!”. É como um vício: cigarro mental ao qual volto inúmeras vezes, do momento em que abro os olhos até a hora de fechá-los novamente.

Há pensamentos chicletosos que somem depois de um tempo, mas outros ficam para sempre, agarrados aos rabinhos dos neurônios. É o caso, por exemplo, de um trecho da trilha sonora de Pulp Fiction, que contraí ao assistir o filme, numa remota noite e, desde então, vai e volta das trevas para a consciência, da consciência para as trevas, ao seu bel prazer: “Get Down, get down! Jungle booggie. Tananananã!”. (O tananananã é a parte instrumental). Estou cansada. No meio de uma aula importante: “Get Down, get down!”; enquanto espero o ônibus no ponto: “Jungle Booggie!”; com a cabeça no travesseiro: “tananananã”.

De todos os exus mnemônicos com quem convivo, contudo, os piores são as músicas infantis. Minha mãe não sabe, mas no almoço de ontem, enquanto discutíamos uns pormenores sobre o vazamento no box do chuveiro, meu ar de cansaço nada tinha a ver com a preguiça de resolver os perrengues domésticos: era o resultado de uma manhã inteira ouvindo, ininterruptamente, “serra, serra, serrador, serra o papo do vovô”, no maldito rádio instalado dentro do meu cérebro. “Atirei o pau no gato” eu canto tanto, mas tanto, que já não me basta o português. “Atiré el palo en el gato…” ou “I threw the stick on the cat” são a música de fundo de boa parte dos momentos que passo acordada.

Outro dia, tive a mórbida alegria de descobrir que meu ídolo, Julio Cortázar, também sofria de acessos semelhantes. Numa crônica do livro Um tal Lucas, o escritor argentino conta que, no meio de um banho, pegou-se dizendo, com “visível prazer vingativo: Now shut up your distasteful Adberkunkus!” (Agora cale-se, seu intragável Adberkunkus). Só no fim da chuveirada, depois de repetir a admoestação várias vezes, foi se perguntar quem, ou o que, seria um Adberkunkus.
A alegria por saber que minha loucura era compartilhada pelo ilustre escritor, contudo, durou pouco: mal fechei o livro e abri a geladeira para pegar uma coca, me vi gritando, mentalmente: “Agora cale-se, seu intragável Adberkunkus!” – em português, inglês e espanhol.

Já desisti de me curar. Encaro como uma doença crônica, que vem e vai. O negócio é tocar pra frente – “get down, get down!” -, aproveitar bem os intervalos – “serra o papo do vovô” – e tentar ser feliz assim mesmo – “jungle boogie”–, sabendo que certas coisas não se calam, por mais intragáveis que sejam, e por mais que imploremos em todas as línguas, conhecidas ou inventadas – “tananananã.”

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