Na maior parte das vezes é um trecho de música, mas pode ser
também fala de filme, verso de poesia ou uma frase solta, sem qualquer sentido
aparente – é o que, na falta de nome melhor, chamo de pensamento chicletoso.
Ele chega sorrateiro, você nem percebe: quando se dá conta, já está lá, instalado
no trapézio da consciência como uma visita na poltrona da sua casa, numa tarde
de domingo, grudado aos seus neurônios como chiclete na sola do sapato.
Dia desses, por exemplo, acordei com dor de cabeça, entrei numa
ducha fria e, assim que a água bateu na testa, revolvendo ideias há muito
adormecidas nas catacumbas da memória, vi-me repetindo, inteirinha, a fala do
vilão de um dos piores desenhos animados que já existiram, Thundercats:
“Antigos espíritos do mal, transformem essa forma decadente em Mumm-Ra! [Pausa]
O de vida eternaaaaa!”. Faz quase quarenta e oito horas que, a cada vinte
minutos, mais ou menos, minha vida é interrompida pela evocação maligna de
“Mumm-Ra [pausa] o de vida eternaaaa!”. É como um vício: cigarro mental ao qual
volto inúmeras vezes, do momento em que abro os olhos até a hora de fechá-los
novamente.
Há pensamentos chicletosos que somem depois de um tempo, mas
outros ficam para sempre, agarrados aos rabinhos dos neurônios. É o caso, por exemplo, de um trecho da trilha sonora de Pulp
Fiction, que contraí ao assistir o filme, numa remota noite e, desde então, vai e volta das trevas para a consciência, da consciência para
as trevas, ao seu bel prazer: “Get Down, get down! Jungle booggie.
Tananananã!”. (O tananananã é a parte instrumental). Estou cansada. No meio de uma aula importante: “Get Down, get down!”;
enquanto espero o ônibus no ponto: “Jungle Booggie!”; com a cabeça no
travesseiro: “tananananã”.
De todos os exus mnemônicos com quem convivo, contudo, os
piores são as músicas infantis. Minha mãe não sabe, mas no almoço de ontem,
enquanto discutíamos uns pormenores sobre o vazamento no box do chuveiro, meu
ar de cansaço nada tinha a ver com a preguiça de resolver os perrengues
domésticos: era o resultado de uma manhã inteira ouvindo, ininterruptamente,
“serra, serra, serrador, serra o papo do vovô”, no maldito rádio instalado
dentro do meu cérebro. “Atirei o pau no gato” eu canto tanto, mas tanto, que já
não me basta o português. “Atiré el palo en el gato…” ou “I threw the stick on
the cat” são a música de fundo de boa parte dos momentos que passo acordada.
Outro dia, tive a mórbida alegria de descobrir que meu
ídolo, Julio Cortázar, também sofria de acessos semelhantes. Numa crônica do
livro Um tal Lucas, o escritor argentino conta que, no meio de um banho,
pegou-se dizendo, com “visível prazer vingativo: Now shut up your distasteful
Adberkunkus!” (Agora cale-se, seu intragável Adberkunkus). Só no fim da
chuveirada, depois de repetir a admoestação várias vezes, foi se perguntar
quem, ou o que, seria um Adberkunkus.
A alegria por saber que minha loucura era compartilhada pelo
ilustre escritor, contudo, durou pouco: mal fechei o livro e abri a geladeira
para pegar uma coca, me vi gritando, mentalmente: “Agora cale-se, seu
intragável Adberkunkus!” – em português, inglês e espanhol.
Já desisti de me curar. Encaro como uma doença crônica, que vem e vai. O negócio é tocar pra frente – “get down, get down!” -, aproveitar bem os intervalos – “serra o papo do vovô” – e tentar ser feliz assim mesmo – “jungle boogie”–, sabendo que certas coisas não se calam, por mais intragáveis que sejam, e por mais que imploremos em todas as línguas, conhecidas ou inventadas – “tananananã.”
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